POR UMA TRANSGLOBALIZAÇÃO DE BASE – Alexandre Aragão de Albuquerque

Neste mês de novembro tivemos a oportunidade de assistir à palestra do teólogo espanhol Jesús Morán, doutor em Teologia pela Universidade Lateranense de Roma, tendo como centralidade o tema “fidelidade criativa”, argumento do livro homônimo lançado no Brasil pela editora Cidade Nova. O autor trata dos desafios da atualização de um carisma religioso – como franciscanos, jesuítas, focolarinos e muitos outros – no respeito à sua identidade e à sua história, no esforço de desenvolver diálogos profundos com os contextos socioculturais nos quais está inserido.

Destacamos uma das provocações de base para a gênese do pensamento de Morán situada numa passagem do discurso proferido pelo Papa Francisco aos participantes do Capítulo Geral dos Sacerdotes de Schönstatt, em 3 de setembro de 2015, no qual o pontífice assinalou com veemência que “um carisma não é uma peça de museu que permanece intacta numa vitrine para ser contemplada e nada mais”.

Com a referida advertência Francisco aponta para o fato de a fidelidade em conservar puro um carisma não significa de modo algum cerrá-lo num altar, mantendo-o hermeticamente alheio e indiferente aos problemas da humanidade pelo receio de contaminá-lo. Pelo contrário, para manter-se vivo e atual, um carisma precisa escancarar-se para a realidade das pessoas e sociedades concretas, a partir dos mais pobres e sofredores, com suas inquietações, problemas e opressões, como essas que estamos constatando ocorrer recentemente nos protestos massivos no Chile ou com as políticas neoliberais de desmantelamento da previdência dos trabalhadores e da retirada das garantias trabalhistas impostas pelo governo Bolsonaro aqui no Brasil, num país que voltou ao mapa da fome com 13,5 milhões de pessoas vivendo em miséria extrema. Somente nesse encontro fecundo com a realidade concreta, um carisma pode renovar-se e crescer, ajudando a transformar para o bem a realidade humana mediante a força espiritual que carrega consigo. Essa é uma questão crucial para todas as instituições carismáticas de todos os tempos e situações, também as do tempo presente.

Sabe-se que em um sistema nenhum elemento existe isolado do restante, há sempre uma interconexão entre as partes de uma realidade estrutural. Sendo assim, o problema da globalização na forma estrutural como ela está sendo encampada pela ideologia neoliberal é o fato de produzir uma “hiperexploração”. Não há reciprocidade. Há uns poucos que acumulam bastante com a riqueza produzida, enquanto a contrapartida é o empobrecimento e espoliação da maioria trabalhadora produtora da riqueza. Nessa perspectiva, um dos argumentos de destaque no livro trata-se da noção de “transglobalização” como superação do atual quadro de globalização neoliberal. Morán esclarece que a acepção mais exata para o prefixo “trans” alude à capacidade que determinada realidade possui em “fazer sistema”. Por exemplo, “transmolecular” refere-se ao sistema que as moléculas formam em um organismo, como também  “transdisciplinaridade” implica a dinâmica de diversas disciplinas no interior de um projeto educativo.

O primeiro passo rumo à transglobalização, segundo o autor, é estabelecer diálogos de base, profundos, conduzidos sempre com maior compromisso e desdobramentos de forças que, embora no meio de inevitáveis dificuldades, revelam-se como resposta possível e concreta às tensões geradas pelo advento do pluralismo cultural para avançar decididamente rumo a um horizonte mais vasto, no que se descobrem riquezas e peculiaridades de todos os participantes, num enriquecimento recíproco. Diálogo capaz de gerar homens-e-mulheres-mundo com abertura e olhares necessários para ultrapassar os limites extenuantes e ineficazes das perspectivas já superadas da globalização em ação. Homens-e-Mulheres-Mundo que vivenciem não o individuocentrismo, mas assumam a centralidade da existência no exercício constante da reciprocidade, húmus capaz de fazer germinar uma nova cultura solidária e inclusiva.

Isto nos faz lembrar o princípio fraternidade, um dos componentes do lema da revolução francesa. Os vocábulos “irmãos” e “hermanos” têm origem no latim “germanus” que significa aqueles que têm a mesma origem humana. Sendo assim, a importância da fraternidade para a vida política se dá porque ela, diferentemente da liberdade e da igualdade, está mais sujeita aos movimentos que caracterizam “as relações” entre os sujeitos políticos. Assim, recolocar a fraternidade, a partir de uma nova perspectiva antropológica, no centro da razão política significa uma forma eficaz de verificar a pretensão universal de qualquer projeto histórico, no caso, um projeto que vise a uma transglobalização.

O valor universal da fraternidade provém da compreensão de a relação social ocorrer no reconhecimento do outro como um ser que possui a minha mesma origem humana, um sujeito a quem devo tratar como “germanus”, ou seja, alguém que possui o meu mesmo gérmen. Somente essa perspectiva poderá garantir a qualidade de uma sociedade política. Para o cientista político John Rawls é a fraternidade que define atitudes mentais e linhas de conduta relacionais sem as quais perder-se-iam de vista os valores contidos nos direitos advindos dos princípios da igualdade e da liberdade. O debate está aberto, o desafio também.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .