Já tivemos a oportunidade de destacar em nossos artigos o tema do discernimento ocupar a centralidade da ação pastoral do Papa Francisco. Para o pontífice, discernir é fundamento para se seguir em frente na conquista do bem pessoal e coletivo, caso contrário os atos humanos tornam-se casuísticos e fechados, bem como as instituições democráticas arriscam-se a servirem a sistemas autoritários e violadores dos direitos da pessoa humana. Por isso, adverte Francisco, é fundamental para todas as pessoas – e em particular para os cristãos – cuidar da formação humana integral, buscando, entre outras coisas, identificar as armadilhas ideológicas, principalmente aquelas veiculadas ostensivamente nos meios de comunicação social, afinal na vida nem tudo é branco no preto ou preto no branco: na vida prevalecem os tons de cinza. É preciso aprender com os detalhes.
Nestes últimos dias pudemos acompanhar vários tons de cinza que continuam a acusar a quadra autoritária em que sucumbimos. Após aceitar ser a nova secretária de cultura de Bolsonaro, o primeiro ato de Regina foi a publicação de um fake. Postou em sua conta no instagram um cartaz com a seguinte afirmação: “Artistas quebram o silêncio. Apoiam Regina Duarte”. Sem consultar os colegas sobre a utilização de suas imagens, o cartaz induz o público a acreditar que aquele grupo de artistas apoia o governo do capitão. Ou seja, nada de anormal para uma secretária integrante de um governo centrado na mistificação, na mentira, na falsificação da verdade. Mas, para a decepção de Regina, vários artistas protestaram veementemente contra essa manipulação. Ela se viu obrigada a retirar o post-fake, ponta do iceberg da práxis desse governo.
Outro fato escondido pelas lentes oficiais, mas muito relevante destes últimos dias, é o vídeo que circula pelas mídias sociais no qual um policial militar armado – integrante da estrutura do estado – agride violentamente um jovem pobre brasileiro, com socos e pontapés, pelo simples fato de o adolescente usar cabelo grande, como bem demonstrou o áudio documental. Muito provavelmente esse policial militar sentiu-se autorizado a agir desta forma por achar que tem domínio sobre o corpo do outro, podendo fazer o que bem quer, e por encontrar respaldo nos discursos e atitudes de autoridades máximas deste país, os quais visam desenvolver uma ideologia da violência contra aqueles e aquelas que não se adequam ao modelo estético-comportamental único por eles definido como aceitável.
Será que o policial militar agiria com a mesma violência sobre um jovem morador do Bairro dos Jardins, na cidade de São Paulo? E não seria essa violência contra o simples uso do “cabelo grande” uma horrenda violação ao direito de um jovem ser pessoa segundo suas convicções e visões de mundo? E a “solução” por meio da violência física não é uma aberração típica adotada por regimes despóticos ocorridos ao longo da história? Eis o tempo de horror a que chegamos com o Golpe de 2016.
A busca de naturalização, por parte da extrema-direita, desses comportamentos falseadores e violentos como norma para a solução das diferenças presentes em nossa sociedade está abrindo uma cratera a nos jogar no fundo de um retrocesso das conquistas civilizacionais a partir da redemocratização em 1988. Está nos conduzindo não apenas para a banalização do mal, mas para a sua radicalização pela mãos do estado brasileiro.
O desafio que se nos impõe enquanto sociedade civil é o de termos a capacidade de discernir entre o que está certo e o que não está certo, a nível pessoal, social e institucional, para adotarmos imediatamente ações coerentes concretas com o objetivo de alterar esta realidade. Discernimento é um ato de vontade da subjetividade, um ato contínuo de conscientização que nos leva à ação, a enfrentar os conflitos, não como aniquilamento do outro, mas como diálogo, tendo em vista a construção do bem coletivo.