— Alguma notícia do Lau, minha gente?
Anastácia, incomodada com os holofotes postos sobre o Caneco Amassado, chamou a atenção de todos para a promessa do Lau.
Se a tua memória não é de sonrisal, caro leitor, tu haverás de lembrar que esse nosso licaniense, apesar de toda a sua história de vida ligada a saias mil e a porres intermináveis, resolvera oferecer-se em sacrifício, indo a pé de Licânia para Canindé. Em vestes franciscanas e levando uma cruz.
— Se houver muitos cabarés e bares no caminho, Lau deverá chegar a Canindé no próximo ano. Se ainda vivo, eu não sei! — açulou Zé Célio, pequeno mas gigantesco e terrível nas suas provocações irônicas.
De repente, um ataque de Nabuco, com suas garras afiadas, fez com que Zé Célio ganhasse o caminho de casa.
— Sh…. Shizzz… Fuz… shuii… Sh… mi…miauuuu!…
— O que o bichano tem? Alguém pisou no rabo dele? — perguntou uma das senhoras presentes.
— Em linguagem clara, povo de Licânia, o gato Nabuco está a nos alertar: “Não se deve tripudiar sobre aqueles que se sacrificam para o bem de todos. São os bem-aventurados da Nova Era!” — professou o mestre Audifax Rios.
Neste exato momento irrompe na esquina do Mercado a Virgulina, com seu ronco característico e o seu empeno no eixo central, que a tornava reconhecida a metros de distância.
— É a Virgulina que vem lá! — gritou o Gazumba, a preparar as tripas de porco no seu quiosque.
Nisso a meninada partiu para receber, de forma festiva, a notável Rural.
— Virgulina! Virgulina! Virgulina!… — gritava a meninada, montando em sua empenada carroceria.
E a boa e velha Rural estampava seu riso no ronco grave do vetusto motor, assim como nas buzinadas com ares de gracejo e mofa.
Quando souberam da missão de Virgulina, seguir os passos do franciscano Lau, a cidade se dividiu.
O padre Araquento, sempre amigo das crendices e incentivador das promessas do povo, pediu um aparte na discussão que já ganhava foros de embate político:
— Todos os caminhos nos levam a Cristo. A Terra Prometida para o Lau é Canindé. E outra coisa: não desconfiem para não serem objeto do “desconfio alheio”!
Uma jovem dama, sobraçando a nova versão da Gramática Real Expositiva de Licânia, assombrou-se:
— “Desconfio alheio”?! Tal sintagma me soa deveras estranho. Quase beirando a um descabido neologismo.
Um dos bêbados presentes interpelou-a:
— Gatinha, não se preocupe com as palavras, mas, sim, com a língua. A língua é viva!
O bafo horroroso daquele defensor do pároco quase levou-a ao desmaio:
— Pelo jeito a sua língua é viva e… podre! —sussurrou, afastando-se e tomando o rumo de casa. Sabedora ela de que o Mercado Público de Licânia não é (nunca foi, nem nunca seria) um berço apropriado para as questões da última flor do Lácio, nem menos palco para uma nova Academia ou Arcádia.
Súbito, Zequinha Arcanjo solicitou a palavra:
— Em primeiro lugar, respeitem a Virgulina. Desçam de cima do seu capuz e dos para–choques, garotada. Virgulina já está avançada nos anos, as cãs da minha Rural pesam-lhe na potência como máquina. Em segundo, não disponho de carro para correr atrás de seu ninguém. Que cada um honre os seus atos. Não será a minha Rural instrumento de discórdia, nem de suspeição, em Licânia. Em terceiro lugar…
Zequinha parou. Virgulina, não se sabe se tristonha com a expressão de seu dono de que “está avançada nos anos”, baixou os quatro pneus, reduziu o nível de óleo e perdeu a água do radiador.
— Virgulina, não se chateie. Seu Zequinha fala assim para a proteger — Marquinhos procurava consolá-la.
Com pouco ecoa a voz filosófica do João Américo:
— Minhas senhoras e meus senhores, povo das ribeiras do Acaraú, a dúvida macula mais do que a verdade; ou, melhor dizendo: a pior das dúvidas enferruja mais a moral de uma nação do que o ferro quente de um erro no lombo de toda uma dinastia de valorosos cidadãos.
Aquela intromissão do proto-filósofo de Licânia trouxe o silêncio para os becos e ruas, antes mergulhados na balbúrdia, nos gritos e nos achincalhes.
Quando João Américo usa da palavra, apesar de ser um amante declarado das expressões barrocas e useiro e vezeiros das tiradas em latim e sânscrito, o Mercado Público sempre se enche de curiosos. Houve noites em que João Américo conseguiu reunir mais de uma centena de curiosos. O prefeito, avisado por seu chefe de gabinete de que aquilo tudo poderia se tornar um prato cheio para a oposição levantar os últimos desmandos da sua pífia administração, cuidou de expedir uma portaria de completo isolamento social, proibindo reuniões ou festas com mais de dez pessoas.
Quando a portaria do alcaide de Licânia foi afixada na entrada do Mercado… o pau comeu. O que antes ficara restrito ao campo da argumentação, da baderna contida e dos comentários inflamados, ganhou foros de guerra em campo aberto. Apesar dos rogos do bom Zequinha e dos apelos do representante de Cristo.
— Calma, minha gente! Calma!…
Ninguém ouvia ninguém. A mão de tapa não respeitava ninguém. Marquinhos enfiou João Américo, padre Araquento, Audifax Rios e, claro, seu Zequinha Arcanjo para dentro da Virgulina e ordenou à fiel companheira:
— Virgulina, Virgulina, cuide de nos tirar daqui. Salve-nos!
Bastou aquele rogo do Marquinhos para que a aguerrida e valorosa Rural desse um cavalo de pau frente ao Mercado, cobrisse tudo numa nuvem de poeira e… sumisse.
Deixando para trás o caos no Mercado Público.Tapas, chutes, gritos, empurrões, cutiladas, além dos palavrões impublicáveis.
Um último detalhe antes de encerrar este capítulo: o bichano Nabuco, quando viu seu Zequinha entrar na Virgulina, ainda quis argumentar:
— Sh…. Shizzz… Fuz… miauuu…
João Américo, de forma pragmática e silente, pegou Nabuco pelo rabo, jogando-o no fundo da carroceria da Virgulina.
— Sh… shiff… miauu…
— Calado, Nabuco, um gato só não faz verão —argumentou Zequinha Arcanjo, arguto como sempre nos seus provérbios.
E ficaremos por aqui. Logo mais faremos o balanço de mortos e feridos, quer pela pandemia, quer pela revolta popular ao ato administrativo da autoridade municipal.
E Virgulina sumiu na poeira, aceleradíssima. Zummm….