Por Deus, por minha família, por minha propriedade, de Alexandre Aragão de Albuquerque

Na peça Toda Nudez Será Castigada, o escritor Nelson Rodrigues discorre sobre o drama do fracasso da modernidade brasileira, construída hipertardiamente, em virtude de as forças conservadoras do passado exercerem um domínio hegemônico pela preservação de seus privilégios. O passado das Capitanias Hereditárias, imensos latifúndios pertencentes aos seus donatários e suas famílias que, com o advento dos governos-gerais e a economia escravocrata, transmutaram-se em Casas Grandes aprisionadoras das liberdades humanas trabalhadoras durante séculos neste país, evidencia o drama barroco brasileiro dividido entre a igreja e a praça, entre a liberdade democrática e a escravidão conservadora, entre o público e o privado. A persistente tentativa de conciliar os dois sistemas – modernidade e tradição – transforma a cena brasileira numa farsa civilizatória.

Apesar de a poética aristotélica definir a arte como imitação da vida – mimesis – até hoje não podemos ter a certeza plena em função de acontecimentos tão impensados e descarados da cena pública que mais parecem peças do teatro do absurdo. Exemplo clássico encontra-se na última votação da Câmara Federal, no dia 17, quando as telas nacionais e internacionais puderam documentar ao vivo o comportamento deletério dos ditos “representantes” do povo brasileiro.

Sem um mínimo de pudor e de seriedade, diante da gravidade do tema a ser decidido por seus votos, no qual estava em jogo a vontade da soberania popular expressa no último pleito por mais de 54 milhões de eleitores que votaram na presidenta Dilma Rousseff, comandados por um deputado-presidente réu denunciado pelo Ministério Público Federal, transformaram a votação da admissibilidade do impeachment num circo midiático global, provocando uma reação de repulsa na grande maioria dos eleitores que pela primeira vez, ao verem o espetáculo da práxis parlamentar nua e crua, começam a perceber que não se pode brincar com o voto: ele não tem preço, tem consequências. Foram os votos de brasileiros e brasileiras que colocaram no poder esse grupamento deprimente e desprezível de deputados federais.

Para manter privilégios do passado e do presente, essa estirpe conservadora é capaz de sacrificar quaisquer direitos, inclusive um dos mais sagrados para a democracia: a expressão da vontade popular em sufrágio livre e direto. E para eles, vale tudo. Invocar o nome de Deus, utilizando a religião como sistema de dominação; invocar o nome da família, usando-a como escudo de moralidade diante do inexplicável imoral daquele processo de votação, cujo objeto – a denúncia – não conseguiu configurar crime de responsabilidade; invocar a propriedade como símbolo daquilo que os move em sua ação parlamentar: o lucro pessoal doa a quem doer. São ainda capazes de ressuscitar a Guerra Fria, encerrada no final dos anos 1980, recolocando ideologicamente em pauta o comunismo como espectro ameaçador da vida social. Chegam ao extremo de fazerem apologia à tortura, crime hediondo de lesa-humanidade, enaltecendo o passado brasileiro com seus torturadores de carteirinha.

Que o dia 17 de abril permaneça vivo em nossa memória, por meio de documentos, artigos, jornais, livros e revistas denunciadores da usurpação da soberania popular. E que a partir dessa memória possamos produzir um aprendizado consequente capaz de aperfeiçoar nosso sistema democrático. O Brasil não pode voltar ao passado. E para isso é preciso refazer todo o seu sistema político de representação e de educação de jovens para produzirmos não apenas meros consumidores, mas sujeitos pensantes juntamente com processos democráticos capazes de viabilizar uma democracia autenticamente representativa e participativa. Isso é tarefa tanto do campo político-institucional quanto do campo das instituições civis. É preciso dar um basta a essa hipocrisia. É chegada a hora de virar a página de nossa história.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .