POBRES CRIATURAS: BELEZA, BIZARRICE E PATRIARCADO VENCIDO

Antes de qualquer avaliação, penso que Pobres Criaturas é uma película tão diferente e desafiadora que tentar avalia-la em palavras não é uma tarefa fácil. É preciso aborda-la em seu “pacote completo”. Confesso que, pela exuberância da ficção cientifica misturada com temas atuais, eu não saberia por onde começar, seja pelo roteiro perfeito de Tony McNamara, maquiagem, cabelo e figurino, a fotografia de Robbie Ryan, além da música dissonante, dos cenários, peças decorativas de época e, claro, a atuação impecável dos atores escalados, sobretudo, o desempenho de Emma Stone, cuja representação como entrega perfeita ao personagem resultou no direito a estatueta do Oscar de melhor atriz deste ano.
O belo filme é o esforço bem sucedido de adaptação do romance homônimo de 1992, escrito por Alasdair Gray, que narra a trajetória de Bella, uma mulher ressuscitada com o cérebro de seu filho ainda não nascido que, após receber uma carga elétrica, tem a vida de volta, em muitas camadas, despertando todos os dias para buscar incessantemente o pomo da autodescoberta.
Inusitadamente, começa com ela, Bella Baxter (Emma Stone), com passos de suicida, vestindo azul, sob um clima dark, tenso, comum aos filmes de terror e mistério, base de uma versão contemporânea de Frankenstein, centralizada, de inicio, no excêntrico médico e cientista Godwin Baxter (Willem Dafoe). Assim, consumando o ato de desespero, a personagem tornou-se paciente do cientista e, depois de uma intervenção cirúrgica em sua cabeça, passa por um processo de crescimento, aprendendo basicamente tudo, inclusive, a andar, apesar de adulta, emprestando a impressão frequente de ser uma eterna criança, como forma usual de negar valores, identidades e autonomia às mulheres.
No decorrer da história, é interessante vê-la movendo-se em um cenário com utensílios antigos, móveis clássicos e estranhos, provavelmente fabricados unicamente para o filme, com dimensões extraordinárias, para obter um efeito desconcertante, lembrando Stanley Kubrick, mas numa época vitoriana, na belle époque, o que marcaria um filme vintage no final do século XIX, mas abordando temas atuais (feminismo, liberdade sexual e patriarcado) quando Bella parte para o seu verdadeiro propósito, seguida de “aventuras tortas” e ações aparentemente desconexas ou nada convencionais.
Nessa busca, se deixa seduzir pelo mulherengo Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), um advogado incumbido de fazer o contrato antinupcial, devido à promessa de casamento com o seu cuidador, um assistente do Dr. Godwin chamado Max McCandless (Ramy Yussef), que desenvolveu um puro sentimento de amor à protagonista, como um ser compreensivo, delicado e confiante, algo que será retribuído nas cenas finais do filme
O sedutor Mark Ruffalo na pele de Duncan, no entanto, leva Bella para conhecer o mundo através de uma viagem pelos mares mediterrâneos. Ocorre que a narrativa revela um homem comum, conservador e inseguro, para não dizer mesquinho, que pretendia utilizar a personagem feminina como objeto sexual, a ter domínio sobre o seu corpo físico, uma proposta machista que acaba sendo uma das mais hilárias, pois ao invés de fazê-la realizada, feliz e dominada, após muitas entregas sexuais, se apaixona completamente por ela e, então o bem sucedido advogado e conquistador vulgar, experimenta a humilhação de ser por várias vezes rejeitado, ao ponto de implora-la em casamento, quando Bella diz de modo lacônico que o seu compromisso com ele foi apenas de viagem e aventura pois já está comprometida com Max McCandless.
Essas sequências que compõem uma “narrativa de provocação”, apresentam situações inusitadas que o diretor Yorgos Lanthimos utiliza como humor ácido para criticar e satirizar a vencida sociedade patriarcal, representada em diferentes modos e nuances pelos personagens masculinos, também tematizando uma infinidades de assuntos perturbadores, como liberdade sexual, prostituição, socialismo, separação do amor físico do amor sentimental, além de outros temas da modernidade.
A questão é simples: se Bella é livre no momento em que passa a experimentar suas vontades, em contrapartida, se observa seu rebaixamento ou subestimação no plano moral, podendo ser taxada de irresponsável, devido a um comportamento próximo à aberração, enquanto para Duncan essa liberdade o envergonha. Na verdade, ele é impotente para domina-la, no desconforto de que não tem poder de castrar o que ela diz; censurar sobre o que faz, sobre seu corpo, ou sobre sua dança.
Aliás, nesse desempenho estranho, desconsertado e, ao mesmo tempo, digno de aplausos – dada a coragem de se expressar por si mesma, sem seguir nenhum formato disciplinar — seu companheiro de aventura não a vê com nenhum encantamento. Ao contrário, pensando ainda na ilusão de superioridade e conservadorismo, acorre a ela tentando toma-la em seus braços, para compartilhar os passos inventados por Bella, fingindo naturalidade, para que sua amante não sucumba na catástrofe da ideia de ficar fora do padrão convencional dos dançarinos distribuídos no grande salão de festas.
O fato é que Duncan Wedderbun, herança do velho costume, só conhece a paixão e o amor de forma egoísta, quando Bella decide por sua liberdade integral e, como se fosse uma obsessão, movimenta-se em neutraliza-la. E não é só isso: além do desprezo, ele conhece a ruína. Todo dinheiro que havia amealhado por esperteza, a protagonista envia para os pobres através de dois marinheiros.
Antes, Bella desejava ajudar diretamente as crianças e pessoas mutiladas de uma aldeia vista de um plano superior, mas é advertida por um afrodescendente, um amigo de viagem, que, se ela descesse, eles não a compreenderiam e certamente seria também morta ou mutilada. Mesmo assim, com coragem, não desiste de ir até lá, mas, simbolicamente, as escadas em dado momento aparecem destruídas, sem continuidade, como uma grave falha no trajeto, de modo a não conceder o acesso.
O certo é que fora da bolha onde vive na mansão de Godwin, sua experiência mostrou que existem muitas amarras tentando prendê-la, ou contrariar suas expectativas de igualdade e libertação em face do que ela chama de “povo polido”. Só que Bella, nesse filme belo e bizarro, chega ao seu ponto maior de ruptura e, por fim, decide que será absolutamente livre, apesar de todas as barreiras que a cercam, principalmente o machismo ainda em voga que ela põe em xeque-mate e o vence com extrema sabedoria.

Durval Aires Filho

Durval Aires Filho é Desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará, professor universitário e mestre em Políticas Públicas. É membro da Academia Cearense de Letras, tendo publicado os seguintes livros: “As 10 faces do mandado de segurança“ (Brasília Jurídica) e “Direito público em seis tempos. Autores relevantes e atuais” (Fundação Boitreaux). Antes da pandemia foi vencedor do Prêmio Nacional de Literatura para Magistrados, com a ficção “Naus Frágeis”.