Pi: E a imersão no abismo humano

O que define o caráter de independência do cinema? Seria o baixo orçamento? O minimalismo e precisão durante seu feitio? Ou o compromisso dos realizadores com as obras nesse espectro executadas? Vai ver seja um pouquinho disso tudo? E na soma de cada um desses pontos é que a cinematografia enquanto arte se expande sob a vertente da originalidade. Característica essa que percebemos no genialmente perturbador “Pi” (1998) de Dareen Aronofsky.

Max é um gênio da informática que constrói um supercomputador em seu apartamento. A máquina realiza operações que passam a ser entendidas pela personagem como uma chave para o entendimento de toda a existência do mundo. Ao mesmo tempo, uma seita judia cabalística e representantes de uma poderosa firma de Wall Street, tendo conhecimento das expertises do acadêmico, tentam capturá-lo a fim de usá-lo em favor de seus propósitos particulares.

Realizado no final dos anos 1990, o longa incorpora toda uma série de camadas que em maior ou menor medida encontramos em filmes como “Cidade das Sombras” (1998), “Existenz” (1999) e “Matrix” (1999). E entre personagens inclusos num contexto complexo, muito psicologismo e um trabalho artístico bastante estilizado, essas obras se relacionam numa espécie de panorama de uma nova forma de apresentação da ficção-científica no cinema.

E com Pi não ocorreu diferente. Em sua forma e sentido num diálogo muito forte, o primeiro filme de Aronofsky lança mão  de um projeto ancorado numa tríade formada pela montagem, fotografia e som. Apesar de não muito discutido dentro da análise cinematográfica, este último tópico é certamente a base do cinema enquanto tarefa de realização. Afinal, no exercício audiovisual, o áudio vem primeiro, certo. Assim, vamos olhar para nosso longa a partir desse prisma.

Porque o elemento sonoro é o que dá o ritmo nesse trabalho. E nele, o encontramos manifestado através da trilha sonora composta por (Clint Mansel). Ora incutido na música eletrônica que guia as suas cenas de ação; ora de forma incidental como nos planos de fundo das sequencias mais intimistas. Mas é “acusmatização” desse som que o filme ganha potência em termos de representação.

De natureza puramente acusmática, o som fílmico apresenta-se ao espectador separadamente da imagem. Em Pi, entretanto, o que notamos é uma espécie de “desacusmatização” dessa plataforma sonora. Uma vez que seu proceso de sincronização o amarra à fonte visual encarnando tudo o que é voz e ruídos no corpo do filme. Assim, as alucinações auditivas e as dores de cabeça que acometem Max acabam ultrapassando a própria diegese fílmica e passa a nos ser, enquanto espectadores, apresentada como a própria realidade através de um incômodo perturbador.

E na esteira de seu impacto sonoro, Aronofsky idealiza a montagem do longa não apenas como procedimento, mas sobretudo como uma maneira de criar uma identidade ao longa. No Jumpcut, portanto, o filme se apresenta com um ritmo bastante fluido em se tratando da forma como os planos se ligam uma o outro. Se Max ingere uma pílula, isso nos é mostrado em cerca de 2 segundos numa soma de 4 planos. Ou seja, 4 planos por 1 segundo e meio de metragem. Pílula, mão, água, boca.

Essa forma de lidar com a montagem por meio da junção de quadros que são fragmentos de uma mesma tomada de cena dotam de Pi de uma dinâmica visual marcante. E a alternância com a repetição regular com certos planos (uma tranca fechada por Max ou os comprimidos por ele ingeridos) obedecem uma estrutura  base que expandem os dados espaço temporais do filme. Sua forma alocada na repetição reveste de significado a neurose, a loucura e os distúrbios como relações que dão sentido a Pi.

Tal significação do medo que emerge do abismo humano é uma perspectiva que o filme aponta. Max, por essa razão, não gera empatia, e apesar de não querermos descer ao fundo com ele, o fazemos em função da dinâmica que nos envolve a partir do que o longa é. Nossa potência espectatorial, no entanto, se ameniza um pouco na maneira como Aronofsky conclui o longa.

Esse peculiar protagonista leva sua perturbação incitada pela matemática às últimas consequências ou estaríamos apenas dentro de apenas mais uma das muitas alucinações às quais o filme dá luz? Nos dois finais que o projeto deixa, caberá a você escolher o seu.

 

FICHA TÉCNICA
Título Original: Pi
Gênero: Thriller, Drama
Tempo de duração: 84 minutos
Ano de lançamento (EUA): 1998
Direção:  Darren Aronofsky

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.

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Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.