PEDRAS E ALTARES

O filósofo francês René Descartes (1596-1650), considerado um dos pais do racionalismo e do determinismo moderno, defendeu a tese de que a dúvida era o primeiro passo para se conhecer algo. Por haver viajado bastante, teve a oportunidade de observar sociedades diferentes com suas crenças particulares: aquilo que em determinada região era considerado como verdadeiro, em outra aparecia como falso. Concluiu que a história e os costumes de um povo – sua tradição cultural – influenciam a forma como as pessoas sentem, veem, pensam e acreditam. Para ele, só se pode dizer que algo existe se puder ser provado, sendo fundamental o ato de duvidar. Dessa atitude expressou uma sentença clássica do seu pensamento: “Ego cogito ergo sum” (penso, logo existo). As quatro regras básicas do seu método científico podem ser resumidas em quatro verbos: verificar, analisar, sintetizar e enumerar.

Todavia, além de cogitar, os humanos são orientados a desejar o que lhes falta.  A fome surge quando o corpo está privado de pão, mas a saudade aparece na distância, quando o carinho da amada está ausente; e a fé na vida eterna desponta quando a finitude da existência torna-se um fardo. Portanto, humanos não lutam apenas pela sobrevivência, mas por construir uma existência que lhes faça sentido. E para isso usam a matéria e as palavras com as quais têm o poder de dar nome às coisas, atribuindo-lhes novos valores.

Por exemplo, uma pedra é um objeto concreto e visível. Mas quando um grupo de pessoas, por meio do seu convívio social, lhe dá o nome de “Altar”, os olhos e os sentidos da visão religiosa humana começam a vislumbrar possibilidades invisíveis que estabelecem conexões com um mundo imaginário, implicando novos comportamentos a serem adotados, fundamentados pelos olhos da fé. Assim, os humanos ao nominarem “Altar” transformaram uma simples pedra em um elemento sagrado, poderoso, santo.

Do mesmo modo numa comunidade onde circula um sentimento de igualdade entre seus membros, no momento em que uma pessoa passa por um processo de iniciação religiosa com fins de exercer uma função sacerdotal, recebe sobre si uma autoridade advinda da crença do grupo, modificando o olhar da comunidade, que passa a contemplar naquele indivíduo um representante de Deus e de sua vontade. E aquela relação social outrora horizontal, transforma-se numa estrutura vertical hierárquica de poder religioso-teológico. Assim, a comunidade ao nominar “Sacerdote ou Pastortransforma um de seus membros comuns em um humano sagrado, poderoso, santo.

Cada comunidade desenvolve suas crenças, ritos e normas de comportamento. Por exemplo, no caso cristão de tradição católica romana, os sacerdotes em geral podem celebrar o sacramento do matrimônio, mas apenas os bispos (sacerdotes mais graduados) podem ministrar o sacramento da confirmação (crisma). Ou então, os padres podem celebrar o sacramento da eucaristia, mas somente o bispo pode abençoar os óleos dos catecúmenos que serão utilizados, por exemplo, nas cerimônias de iniciação de novos crentes (batismo) durante o ano. Assim, a exclusividade para o exercício de determinados ritos demarca a estratificação da autoridade, do poder e de sacralidade na escala hierárquica.

Enfim, é sobre as almas (os sentidos) que a religião busca reinar, por meio do “Dogma”, pela afirmação de verdades que devem ser aceitas pelo grupo de fiéis sem a necessidade de demonstração de sua comprovação. Este tem sido o esforço de Bolsonaro desde que se candidatou à presidência da República em 2018. O ethos da narrativa tramada pelo bolsonarismo não é o de apresentá-lo como um político competente ao longo dos seus mais de 30 anos de exercício como deputado federal, ou como um intelectual conhecedor da realidade brasileira e internacional, capacitado para encontrar soluções de enfrentamento aos desafios impostos pela conjuntura atual. Buscou-se construir uma identificação pública com uma imagem sacra, na qual ele se apresentasse como um eleito de Deus (um Mito) – salvo do controvertido episódio da facada – para ser ungido pelo povo por meio do voto. É nesse dogma que ele insiste diuturnamente, por meio das redes sociais por ele alimentadas, cujo apoio maciço lhe é dado inclusive por crentes cristãos conservadores de tradição católica e evangélica.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .