Parlamentarismo às avessas

A primeira experiência política de parlamentarismo no Brasil ocorreu ainda no Império, durante o Segundo Reinado, a partir de um decreto de Dom Pedro II, assinado em 20 de julho de 1847. Cabia ao Presidente do Conselho de Ministros, depois de nomeado pelo Imperador, indicar os demais membros do ministério.

Mas a jabuticaba do autoritarismo brasileiro consistia no fato de o imperador desfrutar do poder absoluto de nomear quem bem lhe aprouvesse, mesmo que não representasse o partido detentor da maioria das cadeiras conquistadas no Parlamento. Chegando ao absurdo de poder fazê-lo antes mesmo de ocorrida as eleições, como lhe facultava a Constituição outorgada por seu pai, D. Pedro I, em 1824.

A segunda jabuticaba autoritária ocorreu em 25 de agosto 1961, pela renúncia do presidente Jânio Quadros. O vice-presidente João Goulart foi impedido de assumir pela trindade militar: general Odylio Denys, brigadeiro Gabriel Grum Moss e almirante Sylvio Heck. Os militares, não conseguindo realizar o golpe de estado, e expressando o pensamento da classe econômica dominante nacional, impuseram um minigolpe, obrigando o Congresso Nacional à aprovação de uma Emenda constitucional, em 02 de setembro daquele mesmo ano, estabelecendo a mudança do sistema presidencialista para o parlamentarismo.

Com esse arremedo, o vice-presidente eleito pelo voto da soberania popular, João Goulart, tomou posse como presidente, mas destituído da maior parte de seus poderes presidenciais que passaram a ser exercidos pelo primeiro ministro Tancredo Neves (avô de Aécio), indicado pelos militares (almejando a ser o novo poder imperial). Ou seja, o caminho para a ditadura de 1964 estava aberto.

Um dos pressupostos da adoção de um sistema parlamentarista de governo repousa na existência e respeito aos partidos nacionais e sólidos, com sua capacidade de expressar, de maneira reconhecida e nítida, a identidade das visões de mundo e alternativas políticas para a condução da vida social, econômica e cultural de uma Nação. O que não ocorre no Brasil, onde o sistema partidário é fortemente fracionado, no qual muitas destas agremiações funcionam como siglas de aluguel, forjadas pelo poder econômico, visando à garantia pelo Estado de seus privilégios de classe e do fisiologismo político do toma-lá-da-cá.

Uma das causas desse fenômeno deve-se ao fato de, com o golpe militar de 1964, toda a estrutura partidária brasileira ter sido violentamente dizimada pela imposição ditatorial ao criar o sistema bipartidário, representado pela ARENA, partido de sustentação à ditadura, e o MDB, uma frente de oposição que abrigou todos os oponentes ao regime.

Somente com o retorno da democracia, por meio da promulgação da Constituição de 1988, foi recomposto plenamente o pluripartidarismo no Brasil, mas carregando os vícios cultivados durante os 21 anos de sistema fechado autoritário anterior.

Nestes 33 anos de vigência da Carta Magna Cidadã, apenas alguns poucos partidos destacaram-se como organizações políticas fortes, estáveis e capazes de agregar militância, quadros partidários e ideias em torno de um projeto democrático consistente. Entre estes se destaca o Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion, em São Paulo – SP, reconhecido oficialmente como partido político pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no dia 11 de fevereiro de 1982.

No seu manifesto de fundação, lê-se: “O Partido dos Trabalhadores surge da necessidade sentida por milhões de brasileiros de intervir na vida política do país para transformá-la. A mais importante lição que o trabalhador brasileiro aprendeu em suas lutas é a de que a democracia é uma conquista que, finalmente, ou se constrói pelas suas mãos ou não virá”. Portando, um partido comprometido com a conquista democrática como um processo permanente.

Ao completar 20 anos de existência, o PT conseguiu eleger seu primeiro Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em 27 de outubro de 2002, com 61,27% dos votos válidos. Lula foi o primeiro operário a governar o Brasil, em dois mandatos consecutivos (2003 até 2006 e 2007 até 2010). Lula concluiu o seu período presidencial com o recorde de 83% de avaliação positiva por parte da população brasileira. Entre as suas inúmeras realizações, a Era Lula notabilizou-se pela baixa inflação, excelentes desempenhos na balança comercial, redução substancial do desemprego, o maior crescimento real do poder de compra do salário mínimo, o aumento da renda per capita em 23,05% e a retirada do Brasil do Mapa da Fome.

Mas ocorre que em abril de 2016, quando o Partido dos Trabalhadores estava na execução do seu quarto mandato presidencial consecutivo, tendo como presidente Dilma Rousseff, o golpismo mais uma vez voltou à cena pública e assaltou a soberania popular destituindo de forma ilegal a presidenta Rousseff da presidência do Brasil. Uma ampla articulação midiática, judiciária, militar, religiosa e empresarial desenvolveu-se com o objetivo de liquidar justamente aquele partido político – o PT, com suas lideranças e militância – mais importante da história recente do Brasil, buscando bani-lo de nossa cena pública.

Além disso, por articulação de setores do judiciário e das forças militares, houve em 2018 um aprofundamento do Golpe ao impedir Lula de disputar a eleição presidencial. O Partido Militar brasileiro (não oficializado pelo TSE) elegeu para presidência da República um engodo, como etapa do roteiro de seu golpe híbrido, amplamente executado pela direita internacional em vários países latino-americanos no século XXI, para proteger e beneficiar os privilégios do Capital Internacional e de seus lacaios. Como em 1964, mais uma vez os generais mostraram sua subserviência ao “deep state” dos Estados Unidos.

Agora em 2021, diante do desastre do desempenho do seu engodo à frente da presidência, responsável pelo desemprego recorde, pelo genocídio de quase 600 mil famílias vitimadas pelo óbito causado pela Covid-19, com amplas denúncias de corrupção por parte de militares de altas patentes (coronéis) nas negociatas de contratos de aquisição de vacinas, denunciadas pela CPI do Genocídio instalada no Senado Federal, alguns generais ameaçam a não realização de eleições em 2022 se não ocorrerem segundo suas conveniências partidárias. A que ponto eles são capazes de ameaçar a democracia brasileira!

Além disso, as lideranças bolsonaristas e da terceira via estão desenvolvendo no Congresso Nacional, no mesmo compasso das ameaças militares, uma proposta de Emenda Constitucional visando a introduzir o sistema semipresidencialista de governo (um parlamentarismo envergonhado) como tática para barrar os poderes presidenciais de Lula, franco favorito na eleição de 2022, vencendo-a já no primeiro turno, conforme diversas pesquisas abalizadas.

Portanto, mais uma jabuticaba autoritária fabricada pela elite do país. Um parlamentarismo no qual se busca impedir a fala e a ação do maior partido brasileiro, o Partido dos Trabalhadores, e de suas lideranças. Um parlamentarismo às avessas, um mutismo institucional e autoritário, no qual somente têm direito à voz os representantes e detentores do Capital. Trabalhadores e trabalhadoras, é preciso reagir à altura diante desse novo golpismo. Uni-vos.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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