Parábola

Espia! Numa cidade isolada, cuja evolução social se deu de maneira independente ao restante do mundo, todos os moradores eram Judas. Sim, o mesmo Judas Iscariotes da Bíblia, aquele que beijou Jesus Cristo na face e o traiu. Nesse contexto, todos os cidadãos viviam bem, lado a lado, tecendo relações de confiança ética como acontece comumente em nossa própria realidade. Certo dia, um desses indivíduos, distraído durante uma tediosa aula, começa a desenhar no canto de seu bloco de anotações um bonequinho infantil, feito de gravetos, que se move lentamente com o passar das páginas, de trás pra frente, em direção à forca. Intrigado com a falta de embasamento teórico para fundamentar os desenhos dos últimos movimentos de seu personagem, o jovem Judas, logo que chegou em casa, dedicou-se a estudar vídeos e trechos de filmes que ilustravam gestos finais de homens que seriam em breve enforcados. A ficcionalização dos recortes, no entanto, impedia que as cenas explanassem a ação com o realismo devido que ele necessitava para o desenvolvimento de seu desenho. Recorreu a livros e sites igualmente proibidos, a fim de saciar sua sede de conhecimento, até que, por fim, decidiu por si efetivar o ato. Enforcou-se. Era uma madrugada pacata, como todas as outras, encontrou um espesso tronco horizontal e, ali mesmo, efetuou ato o que aprendera em teoria, o nó na corda, o banquinho… Morreu poucas horas depois, provavelmente tendo sua ignorância saciada e, possivelmente, arrependido. Na manhã seguinte, a singularidade de tal ato foi matéria principal em todos os jornais, a sua real motivação, no entanto, calou-se com ele, gerando contagiosas especulações sobre o assunto. Culpa? O pacto tácito de não julgamento moral em relação à deslealdade para com o filho de Deus, que afinal de contas todos carregavam dentro de si, era um assunto tabu naquela pequena sociedade. O autocídio de um igual, porém, trouxe dos porões do inconsciente de cada individuo o factual gerado pela instabilidade entre a conformidade social e a culpa latente, encoberta sob os porões retóricos de cada um. Ainda que as autoridades locais tenham se empenhado em evitar a disseminação das notícias de tal tragédia, não demorou muito para que um segundo caso igual àquele fosse revelado ao público. A razão que levou a esse segundo suicídio por enforcamento – Como só nós sabemos-, foi diferente da primeira, mas não diferente da terceira, da quarta, da quinta… Até que o último homem se viu sozinho na cidade, e, sem julgo do olhar do outro, existiu imperturbavelmente até o fim de seus dias.

É só isso mesmo, sem mais.          

 

Raquel Catunda Pereira

Raquel Catunda Pereira é romancista, dramaturga e contista cearense premiada com as obras "Historia entre Mundos", Prêmio Rachel de Queiroz; "Espetáculo de Você", Concurso Jovens Dramaturgos" e "A Equilibrista", Coletânea de Contos Ideal Clube. A escritora é também Mestre em Literatura Comparada pela UFC e exerce atividades como educadora em escolas de Fortaleza.