O livro “Budapeste“, de Chico Buarque, não necessita de apresentações e elogios. Publicado há vinte anos, foi objeto de muita atenção, desde o Prêmio Nobel de Literatura José Saramago até os fãs assíduos de Chico, e contribuiu para a atribuição do Prêmio Camões, o mais importante prêmio literário da língua portuguesa, em 2019. O livro já vendeu centenas de milhares de exemplares, foi traduzido para vários idiomas e adaptado ao cinema.
Ao reler essa obra após duas décadas, dois elementos me impressionam especialmente. Quando uma pessoa famosa, especialmente no campo das artes, decide publicar um livro, é comum que o conteúdo seja focado em si mesma, com elementos autobiográficos que evocam seu próprio mundo. O público, sempre ávido por conhecer a vida íntima de seus ídolos, muitas vezes compra essas obras independentemente de sua qualidade literária, devido ao efeito do fetichismo. Não é surpreendente, portanto, que os autores desses livros recorram a um ajudante, geralmente um jornalista, para atuarem como ghostwriters.
Chico Buarque também escreveu livros com conteúdo parcialmente autobiográfico, como em O Irmão Alemão. No entanto, Budapeste não contém absolutamente nada de autobiográfico; pelo contrário, sua trama apresenta elementos próximos do irreal e do impossível. Embora o nome do autor tenha certamente impulsionado a divulgação da obra, ela se destaca por sua verdadeira qualidade literária e, acima de tudo, pela extrema originalidade de sua trama.
Vamos relembrar: o protagonista, José Costa, é um ghostwriter que vive no Rio de Janeiro e escreve textos para outros autores que os assinam. Durante uma viagem para uma conferência, ele se vê obrigado a passar uma noite em Budapeste, capital da Hungria. José Costa tem o desejo de ouvir ao menos algumas palavras desse idioma misterioso, mas todos falam com ele em inglês. Em uma livraria, José acaba comprando um manual para aprender húngaro, sendo observado por uma jovem que, com desdém, afirma ser impossível aprender um idioma por meio de um livro. Ela se oferece para lhe dar algumas aulas, e uma sequência de eventos faz com que José desista de voltar ao Brasil e vá morar em Budapeste com a jovem húngara. Ele estuda obstinadamente o idioma, mas sua companheira não para de zombar dele, sempre afirmando que seu húngaro é imperfeito. José chega ao ponto de escrever e publicar livros em húngaro, inclusive poemas, sob um pseudônimo. Acontece que, sua parceira, sem saber que ele é o autor, comenta que as poesias são boas, mas parecem ter sido escritas “com um pequeno sotaque”. Isso gera um acesso de raiva no brasileiro, que decide voltar ao Rio. Nessa segunda parte do livro, somos apresentados a elementos grotescos da vida do protagonista no Rio, que logo retorna a Budapeste e assim por diante. É uma sátira eficaz de certos traços da vida intelectual brasileira. Quando José retorna ao Brasil após vários anos e pede na livraria uma cópia do mega best-seller do qual é o autor oculto, ninguém se lembra de sua existência. Essa parte do livro despertou em mim uma certa reflexão.
Em particular, uma questão que me intriga é a impossibilidade de aprender o húngaro de forma perfeita. Pessoalmente, nunca tive a oportunidade de aprender um idioma além dos rudimentos básicos e, como nunca viajei para fora do Brasil, nunca precisei realmente me esforçar para falar outro idioma. Mas, tenho muitos amigos poliglotas, que falam uma ampla variedade de idiomas, inclusive aqueles mais distantes da nossa língua, como o árabe ou o chinês. Através deles, aprendi que é possível dominar não apenas idiomas europeus, mas também línguas mais exóticas. No entanto, o talento linguístico varia de pessoa para pessoa, e algumas aprendem rapidamente enquanto outras lutam para dominar um novo idioma mesmo após anos de estudo. Esse talento misterioso para a linguagem não parece estar relacionado à inteligência geral, cultura ou flexibilidade mental. Há grandes intelectuais que nunca conseguiram aprender sequer o básico de um novo idioma.
A pronúncia se revela como um dos aspectos mais desafiadores de aprender um novo idioma, conforme destacado no romance de Chico Buarque. Alguns indivíduos têm facilidade para adquirir uma pronúncia impecável desde o início, enquanto a maioria pode passar a vida inteira falando um idioma estrangeiro com um sotaque evidente. A maneira como aprendemos a pronunciar os fonemas quando somos crianças, como a abertura das vogais, nos acompanha ao longo da vida. E isso não se restringe apenas aos idiomas estrangeiros. Muitos países têm fortes sotaques regionais, dialetos específicos de regiões como Itália, França ou Alemanha, ou até mesmo sotaques associados a diferentes grupos sociais, como o cockney dos plebeus de Londres. Por vezes, esses sotaques são estigmatizados e considerados típicos das classes mais baixas, levando muitas pessoas a se esforçarem para se livrar dessas características linguísticas adquiridas na infância, nem sempre com sucesso. É uma tarefa desafiadora.
Aqui, então, tocamos em um dos maiores mistérios da existência humana: a habilidade das crianças de aprenderem um idioma, uma estrutura de extrema complexidade, em apenas alguns anos, sem nunca terem estudado formalmente suas regras. Não conhecemos as regras da nossa língua materna, apenas as dos idiomas que aprendemos posteriormente, por meio de estudo. Como as crianças absorvem um idioma de forma tão natural e intuitiva? Esse é um mistério absoluto. Além disso, as crianças têm a capacidade de aprender até mesmo duas ou três línguas simultaneamente, sem se confundirem. Nem todos se tornam fluentes em um idioma refinado, mas essas distinções são insignificantes quando comparadas às estruturas fundamentais de uma língua, que são verdadeiros milagres de perfeição.
Outro mistério intrigante é o desaparecimento dessa habilidade fundamental à medida que envelhecemos. Por volta dos onze anos de idade, perdemos essa capacidade natural de aprendizado linguístico e passamos a ter que estudar de forma trabalhosa para falar um novo idioma, nunca alcançando o mesmo nível de fluência que teríamos se o tivéssemos aprendido na infância. Seria então recomendável aprender o máximo de idiomas possível antes dos onze anos? A resposta é: Não. Isso porque faz parte desse mistério o fato de que as crianças esquecem os idiomas tão rapidamente quanto os aprendem. Se não praticados continuamente, os idiomas aprendidos anteriormente são completamente e rapidamente esquecidos, a ponto de não terem nenhuma utilidade quando a pessoa cresce e estuda um idioma novamente. É como se o “disco rígido” do cérebro fosse completamente “reformatado” em relação à linguagem.
Ao reler Budapeste, essas questões sobre a aprendizagem linguística e a peculiaridade da pronúncia me fez pensar como Chico Buarque, com sua genialidade, aborda de forma satírica esses temas por meio da história do protagonista José Costa, em busca do domínio do húngaro e das ironias envolvendo sua identidade como escritor fantasma, e como somos instigados a refletir sobre a natureza intrigante da aquisição e perda da linguagem.