PAPOS DE HOSPITAL – A estranha gênese de alguns nomes

Estávamos, eu e a minha eterna parceira, numa das salas de observação do Centro de Internação de Urgência de hospital de médio porte, com recente ampliação que lhe dá uma estrutura modernizante sem intervir na já tradicional que sempre nos tratou tão bem, o que carrega um significado especial porquanto só procuramos serviços do gênero quando sofremos de algum tipo de carência no âmbito da saúde, ou seja, sentimo-nos debilitados, fragilizados e, por conseguinte, carecidos de acolhimento. Cumpria-nos esperar a completa formalização dos procedimentos que normalmente antecedem a uma recomendada hospitalização. E isso iria demandar um certo tempo, exigir de nós um pouco de paciência, porquanto, logo na chegada, a médica chefe do CIU nos informara que cuidaria do caso assim que concluísse o encaminhamento de duas outras internações; ocupávamos, pois, o terceiro lugar da fila, convindo assinalar que, no particular, nem sempre as etapas fluem na velocidade que desejamos.
Sentamo-nos, por indicação do médico plantonista, em poltronas destinadas ao atendimento ambulatorial. Ao meu lado, manteve-se silente e imóvel um jovem de cabelo alourado sob corte militar, de fronte a revelar pele branca e de olhar anilado de circunspecção e comedimento, protegido por lençol branco que lhe envolvia todo o corpo, desde a base do pescoço até os pés, o que, com o auxílio da máscara – instrumento ora de uso obrigatório para quem ocupa, por razões várias, os espaços de equipamento da espécie –, reduzia em larga escala a tentativa de lhe traçar um perfil com base em características exteriores, visíveis a olho nu. À nossa frente, um médico instruía paciente que logo por ele seria recepcionado no centro cirúrgico; era o que deixava transparecer as observações e orientações que um fazia e o outro parecia acolher pelo silêncio. Em posição estratégica, uma técnica de enfermagem digitava nervosamente o teclado de um micro, certamente lançando dados de pacientes em sistemas de controle e acompanhamento, com base em papelada cuja pilha ia, aos poucos, sendo transferida do seu lado esquerdo para o direito. Silêncio. Expectativa. Ansiedade.
– Por que o senhor está aqui no hospital? – Era o jovem quem me indagava, quebrando a mútua indiferença que até então nos mantinha distantes, embora próximos.
E assim se iniciou uma conversa que iria alongar-se por algumas horas. Ele, em observação após tratamento de choque que incluíra até aplicação de morfina, para aliviamento de dores causadas por um certo “duplo-jota”, com previsão de retirada para dois dias adiante, algo diretamente relacionado a cálculos renais; eu, com indicação para recolhimento e tratamento de processo ulcerativo na parte interna do hálux, originário de restrições no fluxo sanguíneo dos membros inferiores decorrentes do diabetes.
– Eu sou advogado. Faço mestrado em Direito Empresarial na Unifor. Pretendo mudar de área de atuação porque percebi que não me realizaria plenamente na Penal, por pura incompatibilidade. Há um pouco de frustração nisso. Desde meados de janeiro que não vou ao escritório, que não atuo. Os benditos cálculos renais…
– Eu sou servidor público federal. Aposentei-me em 2009, após quarenta anos de estrada, 32 dos quais como auxiliar administrativo e, depois, analista de processos no Banco Central.
Assim, com naturalidade, apresentamo-nos. A minha eterna parceira acrescentou um dado que mais recentemente me caracteriza:
– E escritor. Veja o último livro por ele publicado. – E mostrou ao jovem um exemplar do Sinfonia… com que, então, eu o presenteei. Para o devido autógrafo, precisei saber o nome dele.
– Heldérico.
– Como?! – A pergunta, como foi feita, carregava uma considerável porção de estranheza.
– Isso mesmo. Eu explico. Numa noite de carnaval em clube quixadaense, um jovem juazeirense conheceu uma bela moça iguatuense, ambos livres e desimpedidos. Enamoraram-se. Apaixonaram-se. Alguns anos depois, casaram-se e vieram morar aqui, na capital. Quando eu nasci – sou filho único –, decidiram atribuir-me um nome que bem marcasse a feliz parceria que os manteriam unidos pelos meandros da vida toda. Ele se chama Hélder; ela, Érica. E eu, Heldérico.
– Amigo, esse fenômeno linguístico, digamos assim, que, se não aparenta ser comum, também não é raro, a estilística da língua rotula-o de junção ou amálgama. Por meio dele, dá-se o surgimento de uma palavra nova pela confluência de duas outras, com o ponto de encaixe em segmento – grafemas, letras – comum a ambas; no caso, o “e-r” final em Hélder, que perde a paroxitonia e o respectivo acento diacrítico, e inicial em Érica, que só sofre a troca do “a”, marca do feminino, pelo “o”, do masculino.
– Interessante. Explanação de quem conhece o assunto. E por que amálgama?
– Significando “liga”, trata-se de vocábulo de uso mais comum na Química e, por extensão, na Mineralogia. A Odontologia, nas obturações de dentes, e, depois, a Linguística tomaram-na de empréstimo.
Ao ver o meu nome encimando a capa do livro que folheava como se procurasse algo, o jovem indagou-me:
– Quer dizer, Francisco Luciano ou Xykolu, que o senhor escreve contos e crônicas, produz livros e generosamente os distribui com pessoas…?
Eu o interrompi, assinalando:
– … com pessoas que usam a leitura e a produção textual como instrumento de trabalho – professores, jornalistas, literatos, advogados – além de familiares e amigos.

(…)

Após um leve toc-toc na porta de acesso ao apartamento 227, ala 4 do hospital, ela a abre suavemente, logo nos saudando a todos – eu e o meu especial núcleo familiar (mulher, filhas, genro e netos) que ora me visita – com um “Boa noite!” a meio sorriso, apresentando-se, na sequência, como a técnica de enfermagem que vai me assistir no curso da noite que se inicia. Aproxima-se da cama em que convalesço para a sua primeira intervenção. E eu então lhe pergunto:
– Como é mesmo o seu nome, amiga?
E ela, sem suspender o que fazia, respondeu-me:
– Missael.
Demonstro estranheza:
– Veja bem. Conheci um Mosael, sapateiro das antigas que consertava nossas chuteiras no tempo dos “biscoitos” de sola e prego. Lembro-me de um Misael, jogador maranhense, ponta velocista que vestiu a camisa do Vozão. Agora, Missael… Quem e por que lhe deu esse nome… incomum, a meu sentir?
– O meu pai. – Disse-me ela. E esclareceu. – Ele queria um filho homem. Tinha até o nome. Misael. Quando nasci, mulher, ele perguntou à minha mãe: “E agora?”. Ela simplificou a coisa. “Põe outro ‘s’ no nome que você queria. Pelo menos, fica diferente”. E por isso sou Missael, às suas ordens.

(…)

Contou-me esta o fisioterapeuta, em uma das suas visitas para sessão de exercícios visando a atenuar os efeitos da lombalgia que ora me impõem algumas restrições em movimentos corriqueiros.
O pai, aproveitando um dos dias da licença paternidade e portando a declaração da maternidade, dirigiu-se ao cartório do registro civil para cumprir a formalidade que a legislação vigente se lhe impunha, ou seja, o competente registro da filha recém nascida que, por escolha da mãe ainda em pleno resguardo, iria chamar-se Lua.
O escrivão, com amplo repositório de narrativas envolvendo nomes, ao perceber que o declarante e pai se chamava Raul, sugeriu:
– Fosse eu o senhor, daria à minha filha o nome Luar, porque, além de atender, em parte, a vontade da mãe, ainda estabeleceria um ainda mais forte vínculo comigo.
– Como assim? – Fez-se de desentendido o pai e declarante.
– Porque Luar é Raul de trás pra frente.
Antes de dar o devido acolhimento à sugestão, ainda encontrou motivo para outro questionamento:
– E o senhor conhece algum outro caso como este ou seria… assim… algo inédito?
– Não. Não há ineditismo nisto. Cito, por exemplo, o caso do senhor Ayram, comerciante bastante conhecido na cidade, cuja mãe se chama Maria. O ípslon serviu apenas para dar um toque especial ao nome, torná-lo estilizado.
E o registro se formalizou conforme o sugerido.
Assinalei, então, que, quando residia em Caucaia, havia na vizinhança um casal cujo primeiro filho recebeu, na pia batismal e nos assentamentos cartoriais, o invulgar nome de Ricaoj. E o do pai era Joacir.

Nota do autor: Texto produzido hoje, no quarto 227, ala 4, do Hospital Otoclínica, onde busco recuperar-me de efeitos lesivos do diabetes, decorrentes da má circulação sanguínea nos membros inferiores.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

1 comentário

  1. FRANCISCO LUCIANO GONÇALVES MOREIRA

    ERRATA
    1. No 1º parágrafo: onde se lê “antecedem a uma recomendada hospitalização”, leia-se “antecedem uma recomendada hospitalização”. (Obs.: embora haja previsão gramatical para a transitividade indireta do verbo “anteceder”, o uso corrente se dá com a transitividade direta, ou seja, sem a preposição).
    2. No parágrafo introduzido pelo segmento “– Isso mesmo.”: onde se lê “a feliz parceria que os manteriam unidos”, leia-se “a feliz parceria que os manteria unidos”.
    3. No último parágrafo: onde se lê “cujo primeiro filho recebeu”, leia-se “cujo primeiro filho recebera”.