Paixão pela literatura

Ao levantar curiosa questão sobre a leitura obrigatória de Machado de Assis nas escolas, o  prestigiado youtuber Felipe Neto deu uma contribuição importante para o debate em torno do ensino de literatura. Pelo prestígio de que goza nas redes sociais, ampliou e fez visível, com isso, o que pode ou não ser tomado como um problema.

Como ex-professor de literatura brasileira (e disciplinas afins), tenho sido provocado por ex-alunos a emitir minha opinião, o que faço na coluna de hoje com o mesmo entusiasmo com que lidava com a matéria em sala de aula durante pelo menos 35 anos. É bem verdade, tenho que deixar evidenciado aqui, nunca lecionei para crianças, mas o fiz no ensino médio e na universidade, nesta em diferentes níveis: graduação, pós-graduação e projetos de extensão que contemplavam o texto literário e suas correlações com outros campos do conhecimento.

Tomarei como base da minha reflexão, no entanto, a minha experiência como professor de literatura no ensino médio, uma vez que, nos cursos de graduação, o processo pressupõe um nível de trabalho mais especializado, com alunos cuja vida intelectual atingiu uma maturidade maior, por grandes que sejam suas deficiências em termos de leitura num país de não leitores: pesquisas recentes apontam que a média dos livros lidos entre os entrevistados é de 4,95 por ano, e só 2,55 livros lidos por inteiro. Assustador, se comparado mesmo com países latino-americanos. A Argentina, por exemplo, dá-nos uma surra em proporções humilhantes.

Pois bem, a minha opinião: o problema não está no escritor, a exemplo do autor de Dom Casmurro, objeto identificado no debate em pauta, mas na forma como sua obra é ensinada em sala de aula. O erro, pode-se observar, antecipa-se ao próprio debate: “leituras obrigatórias”. Comecemos, pois, excluindo do que proponho a obrigatoriedade. Obrigatória, permito-me tergiversar, só a vacina contra a Covid-19, por exemplo, uma vez que a minha recusa poderá afetar “o outro” com consequências dramáticas. Ao que me consta, desconhecer a obra de Machado é fato lamentável, pelo que sua literatura nos ensina da vida, do homem, do país, de mim mesmo etc, nunca um problema de saúde pública de graves consequências.

Sob este aspecto, permito-me avançar: não se pode ensinar sem paixão. Como despertar o interesse dos alunos, se eu mesmo, a quem é confiada a bela tarefa, não nutro pelo autor (e, por extensão, pela leitura do texto artístico) este sentimento indisfarçável de amar a coisa ensinada? É preciso, pois, que eu seja capaz de “contagiar” o aluno com o entusiasmo que me move ao encontro do incomparável poder da palavra, e com aquilo que existe de mais belo na arte de que é ela a matéria-prima indispensável: seu encanto, sua magia, sua sedução, sua beleza, sua poesia, aspectos que conferem ao texto literário o milagre de romper com a vida real, se preciso for, em favor da imaginação e do sonho, vivendo irrealidades como se fossem a própria realidade elevada a níveis de intensificação que só à arte é dado alcançar.

Mesmo num tempo em que imperam as informações imediatas, o mecanismo perverso da ‘comunicação pela comunicação’, em que as mensagens são vazias ou desprovidas de substância e conteúdos minimamente aproveitáveis, a literatura constitui, com as outras linguagens estéticas, alternativa prodigiosa para salvar o homem do desastre anunciado.

Apaixonado por Machado de Assis, pelo que representa como artista imenso que é, crítico impiedoso das aparências e das superficialidades inconsequentes, jamais abri mão de tê-lo em sala de aula e, mesmo, nos momentos de descontração com meus alunos, fazendo-os ver (e vendo a partir de suas percepções, com que aprendi tanto) que em seus contos e romances, estávamos nós, por inteiro, de cabo a rabo, com nossas aflições, nossos medos, nossos conflitos e nossas hipocrisias inevitáveis, porque humanos, demasiado humanos, como havia disso nos advertido Nietzsche. Mestre, mestre, como nos disse Rosa, no incontornável Grande Sertão, é quem de repente aprende.

Termino por citar, que guardo de cor por todos esses anos, o que me disse um aluno ao final de uma aula sobre Missa do Galo, o conto quase erótico do bruxo carioca: — “Professor, depois dessa aula, estou apaixonado por Machado de Assis”.

Não lhe tinha ensinado nada: apenas o contagiara de paixão pela literatura!

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

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Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

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