PAIS QUE AMAM SEUS FILHOS

VIAJANTES SÃO ESSENCIALMENTE otimistas ou então eles nunca iriam a lugar algum. Em seu livro “Caderno Afegão” (Ed. Tintas da China, 2009), a escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho, em maravilhoso estilo narrativo, apresenta-nos, no seu diário de viagempreciosas descobertas de um mundo desconhecido para os ocidentais: “No meio do trânsito mais tóxico há rotundas com rosas lindas em Cabul. Só vendo se acredita. É preciso ir lá. E é preciso coragem para ouvir as crianças dizerem  em língua dos pashtun que aquilo que mais lhes falta é amniat (segurança)”. Como afirma Carlos Vaz Marques, “o fato de Alexandra escrever tão bem torna-se o meio de transporte em que viajamos por um lugar aonde, é quase certo, nunca iríamos de outro modo”.

Uma passagem, entre tantas encantadoras, trata do poeta e inventor de jardins Muhammad Babur (1483-1530), imperador e autor da primeira e mais requintada autobiografia da literatura islâmica, O Livro de Babur. Enquanto portugueses famosos aventuravam-se nessa época a viajar por mar aberto, Babur andava pelo mundo interior da Ásia Central, feito de estepes, desertos e montanhas, a criar jardins e produzir versos: “Só o sedento conhece o prazer do vinho; que prazer pode o saciado retirar dele?”. Segundo a autora, pelos seus atos e pensamentos, muito provavelmente, nos dias de hoje, Babur seria punido em vários países fundamentalistas religiosos. Mas ele não deixou de ser crente por praticá-los. Em Babur vê-se a afirmação da complexidade humana pessoal que parece espantar face à uniformização e normalização contemporâneas.

O escritor Salman Rushdie (1937-hoje), britânico de origem mulçumana indiana, conta que em sua adolescência ouviu a estória da morte de Babur e ficou muito impressionado. Nesta, o amor de Deus foi usado para tornar possível o sacrifício oposto ao de Isaac: o pai dá a vida para que seu filho viva. A ver o filho arder em febre, Babur deu três voltas ao redor do leito e declarou: “Levo o mal daqui comigo”. A febre deixou o filho, entrou no pai, que logo depois veio a fenecer. Ou seja, essa lenda de Babur permite que filhos olhem para seus pais com segurança, amor e gratidão.

O Brasil da Covid-19, com quase 80 mil famílias padecendo pela tragédia dos óbitos de seus entes queridos, teve anunciado na semana passada mais um ministro da educação, dessa vez um pastor presbiteriano, Milton Ribeiro, ampliando a base fundamentalista religiosa no executivo federal liderado por Jair Bolsonaro. A tese pedagógica central do futuro ministro está fundamentada no Livro dos Provérbios (22, 15). Trata da Disciplina, alcançada por meio do uso da Vara. O desenvolvimento de sua tese pedagógica pode ser apreciado em vídeohttps://www.youtube.com/watch?v=w4vTW_oQQQE&feature=youtu.be, a partir do minuto 24. Nossa sugestão é de que assistam ao vídeo. O futuro ministro da educação fala com base em seu referencial hermenêutico religioso calvinista, afirmando que os princípios encontrados no Antigo Testamento são contemporâneos e plenamente aplicáveis nos dias de hoje, não admitindo a relativização “da verdade dos princípios de Deus, porque Deus é senhor do tempo, é o mesmo ontem, hoje e será para sempre. As regras bíblicas não envelhecem”. Mas ele não para por aí.

Para o futuro ministro da educação, “a estultícia (asneira) está ligada ao coração da criança” (minuto 27). Como exemplificação ele relata um fato vivenciado num vôo no qual percebeu uma criança com cerca de um ano de idade mandando nos pais, gritando e fazendo com que os pais passassem vergonha diante de todos os passageiros. Para ele, a diferença de usar a Vara na criança está no propósito. No castigo, o propósito é o de infligir punição por uma ofensa; na Disciplina, o uso da vara é para instruir para correção. Sendo assim, é legítimo o uso da vara como aplicação da Disciplina, fundamentada no mesmo tratamento que o Deus dele dispensa aos fiéis.Possivelmente, nem Maquiavel, em seus estudos sobre a domesticação que a religião promove sobre os crentes, imaginou chegar a tanto para justificar meios violentos aplicados às crianças como forma de se atingir os fins almejados por pais e mães, professores e professoras.

O pastor alerta: a Vara da Disciplina não pode ser aplicada com Ira (minuto 35). É preciso ter controle sobre a força da disciplina que você vai aplicar, porque o excesso de força pode levar a criança à morte (Provérbios 19, 18). Diz friamente o futuro ministro: “um tapa de um homem, uma cintada de uma mulher podem ser muito mais fortes do que uma criança pode suportar. Mas a vara da disciplina não pode ser afastada da nossa casa”.

A que ponto se chegou! Esse é o país dos eleitores e eleitoras de Bolsonaro. Esse senhor não reúne a mínima condição de ser ministro da Educação do Brasil. Como se não bastasse a violência policial, o excludente de ilicitude defendido por Sérgio Moro, agora, na visão desse pastor calvinista, as escolas e as famílias serão espaços de mais violência contra crianças e adolescentes.

Rushdie relata o horror que sentiu quando adolescente teve conhecimento da estória de Abraão com Isaac, pela prontidão não natural com que aquele pai sacrificaria de morte seu filho. E pergunta: seria esse o amor de Deus que levava os pais a assassinarem os próprios filhos? E completa: “a história de Babur, do pai que dá a vida por seu filho, alojou-se dentro de mim como conto paradigmático do amor paternal”.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .