Os trinta anos da CF/1988 e as ameaças da barbárie político-constitucional, por Filomeno Moraes

A Constituição Federal (CF/1988) completa o trigésimo ano da sua promulgação. É o texto que inaugurou o ciclo mais democraticamente virtuoso de toda a história político-constitucional brasileira, além de caracterizar-se como, depois das Constituições de 1824 e 1891, o mais duradouro. No entanto, na conjuntura, a campanha eleitoral-presidencial ressuscitou fantasmas político-institucional que se julgava já estivessem esconjurados, como os ataques autoritários e populistas ao texto constitucional vigente.

Evidentemente, aqui e alhures, constituições estão sujeitas às vicissitudes dos fatos e aos coeficientes de “sentimento constitucional”, isto é, a consciência social que, maior ou menor e transcendendo os antagonismos, integra detentores e destinatários do poder político. Assim, não é exótico que a CF/88 possua 99 emendas, além das seis realizadas durante a revisão constitucional de 1983/1984. É a vida que vai também para as constituições.

A CF/88 substituiu as cartas autoritárias oriundas dos desdobramentos do golpe militar de 1964, a saber, a carta de 1967, a qual, embora passando pelo Congresso Nacional, não se livrou do travo da imposição, e a carta outorgada de 1969, impropriamente chamada Emenda Constitucional nº 1, resultante do reforço da ditadura, a partir de 1968, com a edição do Ato Institucional nº 5. A situação verdadeiramente anárquica, do ponto de vista jurídico, foi observada então por Paulo Brossard, que realçou a “desordem” advinda da coexistência da “ordem constitucional” e da “ordem institucional”, mas, “em verdade, as duas ordens nem são duas, nem são ordens: a desordem é uma só”. De fato, do furor normativo-autoritário que se dá no período, resultaram duas constituições, dezessete atos institucionais e 73 atos complementares, além de decretos-leis em profusão, o “entulho autoritário” que a CF/88 veio a minorar.

Na verdade, o texto constitucional de 1988 pôde vir à luz em virtude da peculiar modalidade que o poder constituinte adquiriu na efervescência da sociedade brasileira nos 80. Na década de 80 do século passado, sobretudo na esteira da convocação do Congresso Constituinte estabelecida pela Emenda Constitucional no 26, de 27 de novembro de 1985, e prosseguindo até a promulgação do texto constitucional de 1988, o Brasil vivenciou um dos mais importantes momentos de ativação política da sociedade civil organizada, momento este que, dando continuidade ao processo de mudança política iniciado na década de 70, contribuiu para a inflexão do regime militar e a construção de instituições representativas, democráticas e republicanas.

Na conjuntura atual, no debate eleitoral presidencial, pelo menos duas propostas já foram sugeridas, que, embora com graus de gravidade diferentes, trazem preocupação. Uma, prenhe de ambiguidade, é a contida Programa de Governo da Coligação O Povo Feliz de Novo (PT-PCdoB-PROS), registrado no Tribunal Superior Eleitoral, que sugere uma nova constituição, para realizar o “desafio de refundar e aprofundar a democracia no Brasil”. É sabido o itinerário errático do Partido dos Trabalhadores em matéria constituinte, como foi, mais recentemente, a proposta de uma tal “constituinte exclusiva” para a reforma política, vocalizada pela então presidente Dilma Rousseff.

A outra, extremamente tosca, populista e autoritária, é a formulada pelo general da reserva Hamilton Mourão, candidato a vice-presidente na chapa encabeçada por Jair Bolsonaro, de fazer-se uma nova constituição por um conselho de notáveis – sabe-se lá à imagem e semelhança de quê e de quem – e submetê-la a um plebiscito. Uma verdadeira volta à barbárie político-constitucional, misturando “pronunciamento” a bolivarianismo caboclo.

Pelo menos desde que o Abade de Sieyès, autor do panfleto “Quem é o Terceiro Estado?” (há tradução no Brasil com o título de “A constituinte burguesa”) e trazido à luz durante a Revolução Francesa, cultiva-se o método liberal e, depois, o liberal-democrático, pelo qual uma constituição se faz por meio de uma assembleia constituinte, isto é, por meio de representantes eleitos para fazê-la. No Brasil, assim se fez em 1823, embora o primeiro imperador tiranicamente a abortasse, e, com sucesso, em 1890-1891, 1933-1943, 1946 e 1987-1988. A alternativa é a constituição outorgada, oriunda das ditaduras, totalitarismos e autoritarismos de diversos jaezes, em que bem cabe a proposta do general-candidato a vice-presidente. “Vade retro, Satana”!

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).

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Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).