OS TANTOS PRIVILÉGIOS DOS POBRES

Fortaleza, 1 de dezembro de Dois Mil e Nunca.

Não precisamos de justiça para os pobres;
Os próprios pobres, coitados, não carecem
De justiça. Querem confundir suas cabeças?
Pobres mal disciplinados nascem desses
Excessos de direito. Democracia mesmo,
Quando foi que alguém pediu além
De artistas deslumbrados, intelectuais
Cabeludos, jovens de classe média
Muito crentes no Ocidente,
Muito crentes no papel civilizatório do Ocidente,
Muito crentes de que o Brasil faz parte do Ocidente.
Não precisamos de justiça para os pobres
(A justiça mesma não tem culpa da pobreza dos pobres):
Nunca ninguém foi feliz com tanta liberdade
E segurança, raízes tão profundas da angústia.
Que seria dos movimentos sociais
Sem as exclusões sociais? As coisas como estão,
O mundo aparentemente desequilibrado,
É que dá aos pobres dos pobres o grão espiritual
Que o seu espírito embotado não alcança,
Aquilo que os escolhidos, que tanto sofrem,
Já sentem com o roçar de uma pluma de ganso.
É um passo a chamada injustiça, digam aos pobres,
Um passo que aproxima de Deus.
Mal sabem o fardo que é estar tão mergulhado
Em pecados e ainda assim tão puro
E pleno de liberdades. O faminto
Que roubou para comer e que foi pego
E julgado e preso, apesar de um artigo muito claro
Que o defende não tem um drama tão humano
Quanto o coitado do parlamentar
Cuja imunidade é um salvo conduto para tudo:
Ele nos livra da terrível prisão sem grades
De dormir tranquilo apesar de tantos fatos comprovados,
Mas o que são fatos, homens de pouca fé?
Ele nos livra dos defensores das drogas e do aborto,
Da gente absurda que diz que preto é igual branco,
Da gente absurda que diz que menino veste azul e rosa,
Da gente absurda e comunista que muda a cor das bandeiras,
Da gente invejosa, sobretudo, que não quer que tenhamos
As armas e arsenais que tanto queremos poder comprar,
Mesmo que nunca tenhamos o dinheiro: nosso futuro sonho,
Coletivo, de consumo, tão inalcançável quanto a casa própria.
Mas um dia nos permitem passar toda uma vida
Pagando as prestações de uma arma própria.
Teremos o gostinho quase doce
Da liberdade de um parlamentar imune.
E não queiramos mais do que apenas um gostinho,
Que já pode ser bem mais do que o que merecemos.

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.