Os perigos do mundo líquido, por Luís-Sérgio Santos

Zygmunt Bauman é um  sociólogo contemporâneo, —nos seus 90 anos recém completados —, ao gosto da mídia. Ele tem uma intensa produção intelectual, é um polonês que vicejou na academia inglesa e  elaborou, numa perspectiva marxiana  do “tudo que é sólido desmancha no ar”, chega a Walter Benjamin e se supera ao dar consistência pós-moderna  à teoria da sociedade líquida — certamente uma liquefação da reprodução mecânica da obra de arte, do original da obra de arte. A mídia adora Bauman porque ele é uma raridade e não somente por sua vitalidade intelectual aos 90 anos. Todos os grandes intelectuais midiáticos estão derretendo na espiral do tempo e, na ausência de Susan Sontag, de Umberto Eco, de Gore Vidal, de Darcy Ribeiro e, mesmo, de Marilena Chauí, de Francisco Weffort, de Sergio Paulo Rouanet, Zygmunt Bauman é o suprimento perfeito para alimentar o noticiário, digamos, mais filosófico. Mas não somente por isso. Bauman tem argumentos inovadores  que amplificam sua base de influência marxiana. Ele é também um crítico recorrente da concentração de riqueza no mundo que promove a exclusão social. É cético sobre o que chama de “ativismo de sofá” — referindo-se ao ambiente insalubre que toma conta das redes sociais. “Muita gente as usa não para unir, não para ampliar seus horizontes, mas ao contrário, para se fechar no que eu chamo de zonas de conforto, onde o único som que escutam é o eco de suas próprias vozes, onde o único que veem são os reflexos de suas próprias caras”. As redes, nessa perspectiva, são experiências narcisistas e verdadeiros buracos negros que consomem e neutralização as energias do que poderíamos chamar de massas — numa perspectiva de Baudrillard. O “ativismo de sofá” é, portanto, uma armadilha.

“A Internet também nos entorpece com entretenimento barato”, lembra Bauman que tem alguns curiosos vídeos publicados no YouTube falando do poder real das redes e sua potencial capacidade entorpecente, perniciosa e, ao que parece, irreversível. E, também, no caso do Facebook, da banalização do “amigo” da facilidade com se adiciona e se delete “amigos” que, quando se encontram no mundo real, sequer se cumprimentam. Não é incomum que, regularmente, seja necessária uma faxina na lista de amigos do Facebook, esse incrível motor que manipula e direciona feed de notícias e as tendências de navegação dos seus zumbis usuários.

A dependência química da Internet e suas facilidades  e, dentro dela, das redes sociais, mudam o comportamento das pessoas e da sociedade. Uma dessas loucuras incríveis é o cloud computing — a computação em nuvem. Como se sabe, nuvem é aquela coisa que quando a gente olha novamente já mudou, parafraseando Magalhães Pinto. A computação em nuvem é, pois uma exacerbação do mundo líquido, bancos de dados armazenados “em nuvem” em lugar incerto e não sabido — um mundo irreal, virtual, absolutamente intangível. Imagine o dia em que todo o conhecimento estará armazenado em nuvem e, no dia seguinte, todo esse conhecimento não estará mais lá porque a “nuvem” evaporou ou, o caminho para a chegar à nuvem mudou ou o banco de dados simplesmente sumiu.

Não à toa grandes centros de conhecimento, pesquisa e produção intelectual, não abrem mão das versões impressas. Os grandes acervos são construídos por livros, jornais, documentos, cartas, óleo, tinta, tecido e papel. Essas referências físicas são indispensáveis na história da civilização. Quero dizer que uma revista acadêmica, um jornal, uma revista de informação, um livro, não podem se bastar em uma versão meramente digital. As grandes universidades mesmo as que dominam a tecnologia e o conhecimento digital não se bastam ai. O MIT — Massachusetts Institute of Technology —  não abre mão de suas revistas acadêmicas em papel. É um erro penarmos que uma tecnologia, uma mídia nova, pode prescindir de sua versão tangível principalmente quando se trata de produção do conhecimento.

Se todo o conhecimento está armazenado em nuvem, um belo dia, você acordará e ele não estará mais lá. Parece ficção? Pode parecer, mas é bom lembrar que água não tem cabelo.

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Post scriptum

Osvaldo Araújo, o curador do site de Segunda Opinião, me lembra a conversa entre  Umberto Eco e Jean-Claude Carrière publicada no livro Não Contem com o Fim do Livro — que ganhou, em inglês, o titulo This is Not the End of the Book: A conversation curated by Jean-Philippe de Tonnac.

Trata-se de uma ovação ao livro, do modo que foi inventado, isto é, na sua forma tangível no suporte papel. Os interlocutores Eco e  Carrière são aficionados por livros, bibliófilos, colecionadores e leitores compulsivos. São totalmente gutenberguianos, fundamentalistas em relação ao livro. Umberto Eco defende, não sem razão, que o livro é o ato perfeito. Uma obra-prima. Ele diz: “O livro é como a colher, a tesoura, o martelo, a roda. Uma vez inventado, não pode ser melhorado.”
Eco não acredita na supremacia de outras tecnologias sobre o papel. Ele diz: “Para ler, é preciso um suporte. Esse suporte não pode ser apenas o computador. Passe duas horas lendo um romance em seu computador, e seus olhos viram bolas de tênis.”
O amor de Eco pelos livros está claro em seu romance O Nome da Rosa. Ali, crimes são ambientados no interior de um mosteiro habitado por copistas e por estupendo acervo de livros. O período é imediatamente anterior à mecanização da produção iniciada por Gutenberg. Não à toa o nome do frade investigador — é um mosteiro franciscano — é William of  Baskerville, o mesmo sobrenome de um famoso tipógrafo John Baskerville que em 1754 desenhou um tipo de letra serifada que levou seu nome. Eco é semiólogo, para eles todas as coisas ganham sentido novo e diferenciado a depender do contexto.

A edição original , em francês N’espérez pas vous débarrasser des livres (outubro de 2009), da Editora Grasset, ganhou duas versões  em inglês, uma para a Inglaterra (2011) e outra para os Estados Unidos, This is Not the End of the Book. No Brasil, foi editado pela Editora Record.

Agora, um reparo no argumento da imutabilidade do livro. De fato, sua natureza é única e seu caráter inovador é insubstituível que o diga o fracasso comercial das plataformas digitais. Aplicada ao produto cultural a ideia antiga de que uma tecnologia substitui outra mais uma vez dá os burros n’água. Não existe substituição, há convivência e competitividade preservadas as qualidades inerentes de cada meio: o cinema não matou o teatro e suas naturezas distintas continuam preservadas.

No caso do livro, o design gráfico certamente é um grande agregador de valores e faz uma enorme diferença. Tomemos o exemplo do próprio livro de  Umberto Eco e Jean-Claude Carrière e do curador Jean-Philippe de Tonnac. A edição original, francesa, tem uma capa sem nenhuma inovação, pouco original. Usou-se uma tipografia Bodoni, bem adequada, mas o arranjo de composição e layout  é burocrático somando-se uma ilustração que estimula uma metalinguagem: uma biblioteca dentro de um livro, aberto, espelhado e um leitor de chapéu, talvez o próprio Eco. A composição é centralizada e o destaque da capa vai para os autores, o titulo do livro é secundário.

A capa da edição americana (Northwestern University Press, setembro de 2012) é totalmente tipográfica, também usa um tipo de letra serifada e simula o encontro das páginas internas, na dobra, dividindo o titulo em duas margens. É infinitamente mais criativa que a capa da edição francesa.

A capa da edição inglesa (Vintage, maio 2012) é absolutamente irretocável e original: o estado da arte em design tipográfico; a tipografia como uma imagem, cheia de sentidos. Uma composição alltype, usando a fonte Garamond, em fundo branco. Um  jogo semântico e semiológico ao gosto, certamente, de Umberto Eco.

Só o design pode potencializar a condição fetiche do livro não somente  para bibliófilos e outros tipos de dependentes mas para a formação de novos leitores. Quando tiver dúvida sobre o que é isso é só consultar Gutenberg, Bodoni, Janson, Aldo Manuce. Eles fizeram livros irretocáveis, com margens generosas, soberbas entrelinhas e tipografias insuperáveis.

Luís-Sérgio Santos é jornalista e professor da UFC. 

Luis-Sergio Santos

Jornalista e Professor da UFC

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Luis-Sergio Santos

Jornalista e Professor da UFC