OS MÚLTIPLOS SENTIDOS DA MÚSICA

                                           “A música é o que mais se aproxima do divino”
 
                                             Osvaldo Araújo
 
A música é uma manifestação de comunicação natural. Os pássaros se comunicam por música; as baleias e os animais irracionais também. O bicho homem, desde sempre, teve na música o seu mais eloquente instrumento de expressão. Até o som da palavra falada tem na sua entonação uma melodia musical.
Quam não conhece a melodia dos sotaques gaúchos, cariocas, paulistanos, baianos, pernambucanos, cearenses, paraenses, e tantos outros com ligeiras variações pelas entonações próprias? Há até as famílias de entonações e pronúncias similares.

Num mesmo estado há diferenças de pronúncia e entonação; pronunciar a palavra “titia” na Cariri cearense é diferente de pronunciar a mesma palavra em Fortaleza; a pronúncia no Cariri pertence à família que vai da Paraíba à Bahia, com semelhanças, apesar das entonações diferentes.

Do Espírito Santo ao Rio de Janeiro e numa conexão com o distante Pará ao Amazonas fala-se com impressionante similaridade; Minas Gerais é a matriz de um gênero de entonação que se espalha pelo Centro-Oeste, como testemunho da brasilidade mais profunda. E por aí vai.

Quando se entra no Rio Grande do Norte, por Mossoró, que dista pouco mais de 80 quilômetros de Aracati, os sotaques se diferenciam; naquela cidade a entonação do sotaque pertence à família que vai do Rio Grande do Norte à Bahia; nesta última, de Aracati, o sotaque pertence à família da entonação fortalezense, ou os fortalezenses falam como os aracatienses, que vieram primeiro.

Em todo o Maranhão, com seu português herdado do tempo em que tinha comunicação direta com Portugal (e negócios privilegiados pela corte portuguesa, o que atrasou a aceitação da independência por lá), fala-se um português castiço desde o centro às periferias, fato hoje um pouco modificado pela influência da televisão que tudo equaliza.

Todos esses sotaques têm sonoridade própria, justamente porque as palavras ditas em vozes humanas pertencem a gêneros musicais diferenciados e digo isto para afirmar que a música está presente em nossas vidas como instrumento de comunicação indispensável. A palavra recitada com ou sem fundo musical, ou mesmo lida, tem sonoridade musical.

Por sua vez os ritmos musicais pertencem a determinadas famílias com DNA’s próprios que se traduzem em obediência à matriz original.

A música clássica europeia tem a característica de uma linearidade contínua sem a batida forte dos tambores ancestrais que caracterizam a matriz africana. Com poucos contratempos, a música clássica segue uma suave melodia quase sem intermitência que lhe dá uma sonoridade contínua dispensando a bateria, e quando muito, nas execuções de músicas clássicas por orquestras, quando muito aparecem os tímpanos, menos para oferecer rítmicas marcadas, e mais para dar um tom grandioso em determinado estágio da execução musical.

De matriz africana, o Blues estadunidense, com sua cadência compassada e triste, parecendo um lamento cantado pelos escravos catadores de algodão, nascido no sul escravista da colonização daquele país (cujos sintomas segregacionistas são ainda presentes até hoje, infelizmente), rejeitado inicialmente pelos colonizadores brancos conservadores com viés supremacista, representa o maior legado e identidade cultural dos Estados Unidos.

Somente podia ser cantado como oração nas igrejas segregadas aos negros, e aos poucos transbordou os umbrais religiosos para ganhar vida profana a embalar o bom gosto musical com sua sonoridade ao mesmo tempo intimista, reflexiva e melodiosamente rica.

Da família do blues derivam o rock’n’rool, com seu andamento mais apressado, que precisou de um cantor branco e bonito (Elvis Presley, o Rei do Rock), dançando como os negros, para ser aceito e virar coqueluche (hoje diríamos “viralizar”) entre os americanos do norte e se espalhar pelo mundo.

Do Blues derivam o reggae, que se popularizou a partir da Jamaica caribenha de fala inglesa, com Bob Marley (filho de uma afro-jamaicana com um soldado inglês) e ganhou o mundo com sua sonoridade roqueira de andamento mais lento e cadência própria, até o Yê,Yê,Ye inglês dos Beatles com seus ritmos e costumes que fizeram a cabeça  da contracultura dos anos 60.

Já o samba brasileiro, rejeitado incialmente pela elite brasileira como música de baixa qualidade e considerada equivocadamente por esta casta como coisa de escravos tocando tambores ancestrais, ganhou sonoridade rítmica desde o lundu, passando a ser identidade nacional. O Brasil se inseriu no mapa-mundi a partir do futebol e do samba.

Com sua cadência de requebros e sensualidade, com manifesta rebeldia aos hipócritas padrões moralistas brasileiros do Império e até mesmo da República, o samba representa a alegria dos povos que submetidos à subjugação social, econômica e cultural, conseguiram romper a camisa-de-força que se lhes foi imposta e se estabeleceram pela via da arte revolucionária por pura intuição.

Hoje o samba tem versões com nomenclaturas que representam sua diversidade e riqueza cultural, cognominadas como sendo: “samba de roda baiano”; “partido alto”; samba-enredo”; samba-de-breque”; “samba-canção”; “samba pagode”; “afro-samba (de Zé Keti, Baden Pawell, Nara Leão, João do Vale, Vinicius de Moraes); “samba de capoeira”; “samba-axé”; “samba-côco”; “marcha-rancho; “marchinhas de carnaval”; “frevos”; até chegar ao refinado “samba bossa nova”, que ganhou o mundo com sotaque intimista e elementos de jazz.
Quam diria que aquele batuque no couro com mãos afro-brasileiras do Lundu ganharia a projeção e se tornaria a nossa identidade cultural mais legítima e de inegável qualidade???
O Tango argentino, nascido nos cabares de Buenos Aires, e rejeitado pela empertigada elite portenha, apesar do seu toque marcial à moda da Marselhesa francesa, também ganhou sonoridade mais lapidada na voz de Carlos Gardel, um franco-argentino de voz maviosa, nas composições e letras do brasileiro Alfredo Le Pera, no Bandoneon de Astor Piazolla, e se tornou identidade argentina e adotado como tal após ser aplaudido calorosamente no exterior.
O forró nordestino, cujo berço é o Cariri cearense e pernambucano, também sofreu discriminações sulistas, sendo inicialmente cantado no sul “maravilha” apenas nas feiras de nordestinos imigrantes, até que o pernambucano-cearense do Cariri, e fortalezense de moradia, Luiz Gonzaga, legitimamente apelidado de “O Rei do Baião”, conseguiu romper o cerco da mediocridade elitista e se firmou com um dos maiores artistas brasileiros, graças ao aplauso popular que tem gosto apurado quando se lhe dá oportunidade de conhecer o que é bom e benfazejo em matéria musical.
E por aí vai…
Concluo dizendo que a música é um meio de comunicação que pode servir a muitos objetivos,  tais como: educar, conscientizar, mas também levar para a guerra; embotar o pensamento; conservar a alienação da realidade; ou chorar o sentimento de luto pelos mortos; reforçar e exaltar o sentimento de fé religiosa; ajudar a curtir uma fossa pelo amor desfeito, e da qual o sofredor não quer dela se desapegar;  promover a dança; brincar o carnaval como se a vida fosse uma eterna alegria tal como a turma do funil; etc., etc., etc.
Mas sobretudo pode ter, e tem, um sentido educativo transcendental que é da maior importância se utilizado com qualidade e conteúdo didático capaz de conscientizar o povo com entretenimento, que é a forma mais suave de se aprender e apreender o saber.
Dalton Rosado.

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;