A medicina não traz aos mortais apenas boas notícias. Traz as más, também.
Em visita pastoral e obsequiosa ao meu médico de cabeceira — instância respeitável que erigi entre a vontade de viver e a contingência da morte —, recebi uma revelação terrível.
Disse-me contristado, por saber do mal incurável que me corrói o caráter, que livro velho causa fibrose pulmonar. Os ácaros são, pude concluir, os maiores inimigos da civilização. A cultura não é mais do que a dissimulação dos intentos gramscianos dos ácaros ativistas. Tremi diante do que me esperava naquela consulta mal-começada.
Em processo avançado de bibliopatia diagnosticada, recuei, em face da revelação perversa e condenatória, e pensei nos meus tesouros transformados em foco de moléstias e padecimentos indescritíveis — da fibrose livreira pulmonar.
Dirigi os meus graves pensamentos, no primeiro momento do compartilhamento daquela descoberta insólita, os meus pensamentos para amigos, como eu, dominados por esta bibliofrenia destemperada, bibliopatas que somos, em gozo de provisório liberdade, ameaça para a saúde pública. Recordo aos mais indulgentes e esquecidos que o livro já foi objeto de confisco pela Igreja e pelos soldados da fé, ardeu nas fogueiras de São Petersburgo e de Freiburg, foi retirada das bibliotecas onde quer que pudesse despertar pensamentos ímpios.
“ — Fibrose livreira!” acudiu Auto Filho, orgulhoso da sua criação de milhares de brochuras e encadernações no pasto livre dos ácaros domésticos.
“ — Incunábulos mal tratados, vício mal cuidado de colecionadores inidôneos”, apontaria José Augusto Bezerra, apascentador diligente de pergaminhos e códices fora do mercado…
“ — Socialização indecorosa de livros apanhados à larga, sem intenção prévia de uma leitura disciplinada”, diagnosticou Lúcio Alcântara.
Outro esculápio, em visita indiscreta, a desoras, ao lugar no qual guardo e conservo os meus vícios e os ácaros que hospedo, juntamente com alguns amigos — Saramago, Cervantes, Eça, Machado, Jorge Amado, Llosa e os meus diligentes pensadores de ocasião (Espinosa, Voltaire e Nietzche) — condenara os meus tapetes de origem duvidosa, estirados aos nossos pés.
Um velho reacionário, sobrevivente de dezenas de revoluções embargadas pelas forças armadas, pela Igreja e pelos pretores das leis, já recomendara a expulsão da minha livralhada de alguns pensadores heterodoxos. Resisti, escondi a prova dos meus crimes entre livros cristãos de catequese, lugar, por aqueles tempos, seguros para os relaxamentos da moral e da fé.
Outros, mais à esquerda, não hesitaram em apontar o dedo da culpa para escritores tidos como ortodoxos em excesso.
Mergulhado em dúvidas e irresoluções fundamentais, convoquei um ex-comunista militante, convertido aos ideais de uma democracia relativa, e pedi-lhe orientação:
“ — As ideias ou a fibrose, José Trotski da Silva?”, indaguei-lhe, hesitante.
“ — Bastam as ideias, cara. Essa de ácaros é um ato discricionário de alguns médicos. Os ácaros são a quinta-coluna do pensamento progressista: bactérias ou vírus, ácaros são produto da imaginação discriminatória da burguesia.
E eu, aliviado:
“ — Os ácaros não existem, são apenas uma figura de retórica! Os ácaros não passam de erutações burguesas de desconsolados ativistas neoliberais aposentados”!
(Ilustração UOL)