Os duzentos anos da Independência e a outra Independência

 

 

Convencionou-se que o  Brasil completa duzentos anos como país independente. É necessário lembrar que a Independência foi um processo complexo e, por diversas razões,  ainda não se concluiu. Lá nos   primórdios desse processo complexo e incompleto, não se pode esquecer que partiu, não de um projeto  pronto e acabado, mas de um conjunto de projetos em conflito que a política, não sem recorrer em diversas oportunidades ao uso da força, acabou por fazer prevalecer um deles.

O decisionista José Bonifácio dizia, à época, que de todos os partidos em que se achava dividido o Brasil, duas eram as principais divisões, a saber, os não-separatistas e os separatistas. Ainda de acordo com Bonifácio, os primeiros eram inimigos da Independência, “fanáticos chamados vulgarmente de pés-de-chumbo, que ainda suspiram pelas cebolas do Egito”; os outros eram os “sectários da Independência do Brasil”. E prosseguia que os separatistas se estavam subdivididos em quatros classes: 1. os que queriam a separação, mas não a liberdade, preferindo o antigo governo, e eram chamados de “corcundas”; 2. os republicanos, os “prognósticos”, partido que seria “miserável e abandonado por todo homem sensato”; 3. os monárquico-constitucionais, fitando “suas vistas na felicidade geral do Estado; não querem democracias nem despotismo, querem liberdade bem entendida e com estabilidade; este partido forma a maioria da nação”; 4. os federalistas, “ou os bispos sem papa, […] os incompreensíveis”, almejando “um governo monstruoso; um centro de poder nominal e cada província uma pequena república, para serem nelas chefes absolutos, corcundas despóticos”.

Monarquia absolutista, monarquia constitucional centralizada, monarquia constitucional descentralizada, uma república ou várias repúblicas foram os projetos que se digladiavam, acabando por prevalecer o da monarquia constitucional profundamente elitista, escravista, baseada no voto censitário. Hoje, um dos argumentos mais desafiadores sobre o tema é o da outra Independência, proposto pelo historiador pernambucano Evaldo Cabral de Melo, para quem “a fundação do Império é ainda hoje uma história contada exclusivamente do ponto de vista do Rio de Janeiro, à época, pelos publicistas que participaram do debate político da Independência, e, em seguida, pelos historiadores (…) que repristinaram a versão original visando à maior glória da monarquia ou da unidade nacional”. Destarte, faz-se necessário captar os acontecimentos, a atuação dos atores políticos e as nuanças que o cercaram, tudo no sentido de recuperar a contribuição das então capitanias/províncias para a história constitucional brasileira.

A propósito, pode-se constatar que a  participação da capitania e depois  Província do Ceará se caracterizou por certos graus de autonomia em relação tanto ao processo que acabou por se tornar hegemônico no país  quanto no que concerne a outras províncias do Norte e do Sul. Temporalmente, são sete anos de efervescência constituinte, nascendo com a Revolução de 1817, prosseguindo com a participação nas Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa e na Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil e culminando com a Confederação do Equador, com a sua esteira de brutalidade, sangue e sofrimento.

De todo modo, se o constitucionalismo diz respeito às circunstâncias históricas ocidentais, não há como negar a pluralidade de experimentos e visões, cada um com a sua especificidade e originalidade. Assim, deve-se evitar a  compreensão do constitucionalismo nacional  como um desvio do europeu e do norte-americano. De fato, na América Latina de um modo geral e no Brasil em particular, no início do século XIX, se desenvolveram diversos ensaios de governos constitucionais. Até então, existiam poucas experiências, entre as quais, além da britânica, a norte-americana e a francesa, as duas últimas configuradas a partir da segunda metade do século XVIII; a espanhola só ocorreria a partir de 1808; e a portuguesa, na terceira década do século XIX. Por conseguinte, não havia  ainda modelo teórico constitucionalista definido e inúmeras questões continuavam em aberto, tais como soberania popular ou nacional, separação de poderes, representação, direito ao sufrágio, eleições.

O resto é completar o processo da Independência no sentido da construção de uma sociedade politicamente democrática, economicamente desenvolvida e socialmente justa, o que só pode ser feito por meio da política.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).

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Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).