Os conflitos, a democracia e a luta política

A ideia do conflito enriqueceu sobejamente o pensamento sociológico. Ela quebrou todas as imagens funcionalistas da sociedade como um todo organicamente integrado o qual em bloco deveria ser assumido ou abandonado. Esses defensores absolutos da integração social acreditavam no caráter patológico dos conflitos que, por essa razão, devem ser sufocados a fim de se alcançar a paz e o bem-estar social. Além dessa escola, o pensamento revolucionário igualmente acredita na unidade interna da sociedade, consequentemente, para ele, a mudança social só pode ser feita por uma ruptura que é a razão de ser das políticas revolucionárias: a passagem para uma ordem inversa pressupõe um elevado nível de integração das novas instituições e dos grupos dirigentes bem como a necessidade de um centralismo pós-revolucionário.

Mas é o conflito, ao ser considerado como um elemento central das coletividades sociais, desde a família ao Estado, que afasta todas as concepções de “tudo ou nada”, sendo o fator decisivo contrário a todos os planos de construção de uma cidade ideal. Foi com a sociedade industrial de mercado, como bem lembra Alain Touraine, que a noção de conflito social alcançou sua máxima importância, já que nas sociedades industriais capitalistas resistências fortíssimas se opuseram à ideia de uma integração completa da vida social e da vida política. As duas utopias opostas, aquela da integração social completa e aquela da ruptura revolucionária, perderam muito do seu terreno tendo em vista justamente a modernização ocidental, no momento em que se formaram as organizações sindicais e quando foram votadas as primeiras leis garantindo direitos sociais. Essa complexificação das sociedades industriais acarretou a proliferação de um grande número de conflitos que surgem, desenvolvem-se e são resolvidos, em boa parte, independentemente uns dos outros.

Portanto, todo indivíduo, todo grupo se encontra situado em diversas relações de poder ou de dominação. Todo indivíduo, todo grupo se choca com obstáculos que o impedem de se afirmar e de defender seus interesses: a vida social repousa sobre uma pluralidade de dominações e de conflitos. Nesse sentido, o mundo do poder e do lucro busca continuamente eliminar o mundo dos sujeitos pelo qual ele se sente ameaçado, porque são os sujeitos que fundam e animam os movimentos sociais e suas lutas pelas mudanças no uso e na aplicação dos recursos de uma sociedade. E a estratégia desenvolvida pelo mundo do poder e do lucro é criar ideias e fetiches aos quais os indivíduos e grupos, de bom grado ou pela força, são convocados a identificar-se com eles.

Na cena nacional, o tabuleiro político está a demonstrar claramente esta luta de interesses. Por um lado, o conservadorismo ganha espaço institucional a partir das articulações na Câmara Federal, capitaneado pelo deputado peemedebista Eduardo Cunha, unindo setores da base aliada que se autoproclamam autônomos, e com forte presença representativa na sociedade, a chamada bancada BBB (da bíblia, da bala e do boi), somando forças com a oposição, colocando em pauta, e às pressas, projetos de lei contrários aos interesses dos trabalhadores como é o da Terceirização Generalizada. Na tentativa de barrar essa autonomia conservadora, o governo federal elegeu como o seu novo articulador político o presidente do PMDB, Michel Temer, vice-presidente da República. Em seu primeiro ato conseguiu um compromisso expresso, mediante a produção da carta lideranças, no qual os presidentes de partidos e líderes da base aliada na Câmara apoiam o ajuste encaminhado pelo governo e assumem compromisso de evitar matérias legislativas que impliquem aumento de gastos ou redução de receitas que impactem quaisquer esferas do Estado brasileiro.

Por outro lado, correndo por fora, em pleno diálogo com senadores, governadores e a sociedade civil organizada, o ex-presidente Lula, cumpre uma agenda lotada de compromissos que vão desde a visita a escolas do MST, inauguração da primeira concessão de TV digital a um sindicato de trabalhadores, almoço com lideranças do Senado, até a inauguração de indústria de cerveja em Pernambuco, em companhia do filho do ex-governador Eduardo Campos.

Esse cenário é apenas o começo de uma nova queda-de-braço política na qual estão em jogo os diversos interesses dos indivíduos e grupos que compõem a sociedade brasileira, onde serão decididos os rumos e as prioridades da alocação dos recursos materiais e imateriais que produzimos socialmente. Dá para ficar neutro?

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Editora Dialética); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .