Imagem-o-setting-analítico-utilizado-por-Freud

Olhar, escutar, sentir o outro

“Não podemos chegar à sabedoria final socrática de conhecer-nos a nós mesmos se nunca deixarmos os estreitos limites dos costumes, crenças e preconceitos em que todo homem nasceu. Nada nos pode ensinar melhor lição nesse assunto de máxima importância do que o hábito mental que nos permite tratar as crenças e valores de outro homem do seu próprio ponto de vista.”

Bronislaw Mallinowski

Na atividade psicanalítica tempo e experiência são entrecruzados a partir da narrativa de histórias. Vamos imaginar a configuração do setting clássico da análise: o analisando deitado no divã em processo de associação de ideias que lhe ocorram livremente e o analista sentado atrás dele, em atenção flutuante. Posso traduzir essa atenção como um ato de entrega ao momento da análise, sem preconceitos, sem os limites impostos pelo pré-concebido. Estas condições são importantes porque para conseguir “entrar na história do outro” é necessário desarmar o gatilho das certezas. Caso isso não aconteça há o disparo de frases de efeito mecanizadas, de interpretações apressadas, correndo livres para o equívoco!  Não basta ouvir o tear de palavras e silêncios que ocorrem no setting. É fundamental saber olhar, escutar e sentir o outro.

Imagem: o setting analítico utilizado por Freud

Imagem: o setting analítico utilizado por Freud

Certa vez escutei de uma professora palavras valorosas que sempre vou levar comigo, ainda que com o tempo essas palavras passem a habitar meu ser em morada silenciosa, subterrânea, sem que eu saiba quando novamente emergirão: “Psicanálise exige muito estudo. A gente estuda muito para poder esquecer”. Por que esquecer? Para poder estar inteiro na experiência da atenção flutuante, para poder estar entregue na relação, no encontro com a história do outro. Afinal, o trabalho realizado na análise, o que efetivamente propicia insights e percepções fortes, ocorre no inconsciente.

E o território do inconsciente é movediço, mutante, atemporal, impossível de mapear pelos rigores da certeza. “As formações do inconsciente apresentam-se diante de nós como atos, falas ou imagens inesperados, que surgem abruptamente e transcendem nossas intenções e nosso saber consciente” (NASIO, 1999, p. 33). Ferida narcísica que ecoa pelo reconhecimento de Freud de que o homem não é senhor em sua própria casa.

Puxo um fio para a antropologia social e recordo uma citação de Roberto DaMatta: “A Antropologia Social autêntica só pode acontecer quando estamos plenamente convencidos da nossa ignorância” (1987, p. 13). Estar convencido da ignorância para poder “enxergar nossa humanidade no outro; e o outro dentro de nós mesmos” (p.14).

Vivemos atravessados por histórias. Artistas são também narradores e muitos contaram a história do Brasil colonial e imperial por intermédio das imagens que criaram. Folheio a apostila da escola de minha enteada e lá estão as aquarelas e gravuras da viagem pitoresca de Debret, as paisagens de Taunay, as pinturas históricas de Pedro Américo. São imagens carregadas de intenções, do que se queria e podia exibir.

Imagem: Nicolas- Antoine Taunay. Vista Tirada do Morro da Glória, 1820, 47x57cm. Museu Castro Maya, Rio de Janeiro

Imagem: Nicolas- Antoine Taunay. Vista Tirada do Morro da Glória, 1820, 47x57cm. Museu Castro Maya, Rio de Janeiro

A paisagem representada por Taunay em 1820 é calma, contemplativa, sem  indício de rebuliço. Apenas um detalhe trai a cena, indicando o movimento: dois escravos pulando a janela. Taunay era excelente miniaturista e a pintura exige do espectador um olhar atento para perceber a discreta fuga.  Muito tempo depois, em 1997, uma artista chamada Adriana Varejão prestou muita atenção em todos os detalhes da cena elaborada por Taunay. Adriana passava várias horas no museu reproduzindo pinturas históricas para depois atravessá-las, virá-las pelo avesso, mostrando suas entranhas.

Imagem: Adriana Varejão, Carne à la Taunay, 1997. 65x75com

Imagem: Adriana Varejão, Carne à la Taunay, 1997. 65x75com

Na obra de Adriana Varejão o que estava oculto, submerso pelas dinâmicas de poder das narrativas da história oficial da colônia/império vem à tona. O esquartejamento da pintura permite ver o que estava por baixo do invólucro pictórico:

                                                     Por mais que se queira desenhar um quadro idílico dessa colônia paradisíaca perdida no Atlântico, não há como se desfazer de tantas contradições do projeto colonial: a leseira do clima não apaga a violência da escravidão e do próprio sistema; a falta de homens não elide a hierarquia que preside as relações sociais; o lado de fora (a paisagem bucólica) não anula o de dentro (as entranhas do sistema e da situação compulsória que explica tantas clivagens sociais); assim como o estado mais radical de violência não impede a presença da sensualidade expressa nos corpos. Chega a parecer que a calmaria apenas prenuncia a tempestade, a qual é servida, por Adriana Varejão, em baixelas e pratos (SCHWARCZ, 2014, p. 174).

Os pedaços retirados da pintura são servidos em pratos coloniais. Estranho? Assim como no sonho, o que está do lado de lá, as forças recalcadas no inconsciente assumem formas estranhas quando ultrapassam a barreira do recalcamento. Por mais paradoxal que seja aceitar tal fato, o que nos causa estranhamento também traz a força muito familiar do que não queremos ver e reconhecer. Somos herdeiros e continuamos apegados a esse estranho banquete.

Referências bibliográficas:

DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

NASIO, Juan-David. O prazer de ler Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

SCHWARCZ, Lilia Moritz & VAREJÃO Adriana. Pérola imperfeita: A história e as histórias na obra de Adriana Varejão. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014.

Ana Valeska Maia Magalhães

Advogada, graduada em Artes Visuais, graduanda em Psicologia, aluna da Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Fortaleza e Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela UECE. Autora dos livros “Pulsão Irrefreável: arte contemporânea no feminino” e “Tessituras: em contos, crônicas, poesias e imagens”.

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Ana Valeska Maia Magalhães

Advogada, graduada em Artes Visuais, graduanda em Psicologia, aluna da Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Fortaleza e Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela UECE. Autora dos livros “Pulsão Irrefreável: arte contemporânea no feminino” e “Tessituras: em contos, crônicas, poesias e imagens”.

10 comentários

  1. Hercilia

    A psicanálise narrada por você me traz outros saberes. Incrível como começamos a leitura no divã, viajamos em fatos culturais e voltamos para a catarse no setting. Parabéns minha amiga.

    • Ana Valeska Maia Magalhães

      |Autor

      Hercília, ter você acompanhando os textos é uma alegria, pois estamos construindo juntas essa história.

  2. Keila Targino nascimento

    Fascinante o seu texto Ana!
    Pra podermos adentrar no universo do outro, é realmente preciso sensibilidade, saber ouvir, sentir como você mesma diz, estar por inteiro.
    “Desarmar o gatilho das certezas”.
    Adorei!!!!!

  3. Alessandra Holanda

    Excelente texto!! Adorei!! Em Inhotim- MG tive a oportunidade de observar algumas obras da Adriana Varejão….impactantes, mostra nossa vulnerabilidade …bastante reflexivas.

    • Ana Valeska Maia Magalhães

      |Autor

      Alessandra, sou fã da obra de Adriana Varejão. Muito interessante e forte.
      Se você mora em Fortaleza em breve teremos uma exposição dela. Será imperdível!
      E a experiência de estar no Inhotim é inesquecível. Que bom que você conheceu o lugar.
      Grande abraço.

  4. Juliana Diniz

    Querida Ana, seu texto me fez reencontrar uma série de reflexões que, de certo modo, permeiam minha relação com a análise e que dizem respeito à compreensão do próprio vínculo que se estabelece entre analista e analisado. Não me parece correta a concepção de que é preciso se desvencilhar dos pré-juízos e pré-conceitos que nos definem como seres históricos para que o fluxo do inconsciente possa emergir, dando espaço ao trabalho analítico. Essa ideia é equívoca porque parte de uma impossibilidade: não podemos nos despir do que somos enquanto seres inseridos em uma tradição recebida desde o ventre, na forma de cultura e de afetos. Achar que, somente após um afastamento dos pré-juízos e pré-conceitos, o homem pode conhecer-se a si é destituir a humanidade daquilo que a define enquanto produtora de significados simbólicos: a sua temporalidade, sua historicidade. Por isso, estou convicta de que é muito mais frutífero um trabalho de análise que leve a sério tais pré-conceitos e pré-juízos enquanto elementos constitutivos da subjetividade que se dá para análise. A relação analítica, enquanto relação de dois seres históricos, não pode pretender essa neutralidade do passado, porque seria pretender uma neutralidade do próprio humano. O analista, por mais hábil que seja em esquecer, jamais conseguirá esquecer de si mesmo e de sua história. Sejamos sinceros no nosso limite de compreensão do outro, afinal, não é a psicanálise um grande exercício hermenêutico? Um grande abraço, Ju.

    • Ana Valeska Maia Magalhães

      |Autor

      Juliana, entendo tuas palavras e concordo contigo. É claro que ninguém pode se despir da própria cultura. É difícil o manejo das palavras sem o risco do equívoco, ou de dizer algo e o outro interpretar de maneira diversa. Concordo com o que você disse, então vou apenas reforçar a questão do sentido do que foi explicitado no texto: quando trago a necessidade do esquecimento é no sentido de evitar as fórmulas prontas ( e como há fartura de fórmulas atualmente). É no sentido de estar inteiro e entregue ao momento presente na relação com o outro. Com certeza estamos na história, mergulhados e atravessados pela força da cultura e do que foi vivido. O sentido do que trouxe é muito próximo do que disse Bachelard na poética do espaço: “é preciso que o saber seja acompanhado de um igual esquecimento do saber. O não saber não é uma ignorância, mas um ato difícil de superação do conhecimento”. Enfim, reaprender o simples. Mas é tão difícil ser simples. Olhar, escutar e sentir o outro sem tantas certezas e julgamentos. Lembro de uma entrevista de Trindade Santos “os outros são a única oportunidade que me é concedida de compreender a mim mesmo”. Enfim, já falei mais do que pretendia e trouxe outras vozes para nossa conversa. Eu também estou na peleja para colocar mais sensibilidade no olhar, na escuta e no sentir. É difícil, é um exercício arriscado e muitas vezes doído. Mas ainda continuo achando que vale a pena.
      Não sei se foi possível fornecer um outro olhar para o texto, ou de mostrar que, afinal de contas, nós concordamos. Se não, a gente continua conversando em outras oportunidades. Fico grata por tua presença aqui. Você é uma pessoa que admiro.
      Outro grande abraço pra você.