O zé povinho e a dança das armas, por Haroldo Barbosa

Na gíria do crime, as pessoas comuns, que não são do meio e nem ligadas ao aparelho repressivo do Estado, são conhecidas como “zé povinho”. E somos nós, os“zé povinho”, os que mais têm sofrido com o inferno dos ataques criminosos no Ceará.

As facções foram chamadas para o enfrentamento aberto através das declarações e ações do secretário de Administração Penitenciária do Estado (SAP), Luís Mauro Albuquerque no dia 2 de janeiro. Desde então a rotina tem sido alterada por fogo, bombas e medo.

Os criminosos, que iniciaram seus ataques contra alvos tradicionais como ônibus, bancos e delegacias, passaram ao longo destes dez dias de inferno a fazer ataques indiscriminados e que não repercutem junto ao Estado e nem ao status quo, que são em boa parte responsáveis pela situação caótica em que estamos.

Queimaram o ‘Carro dos Churros”, no bairro Granja Lisboa, no Grande Bom Jardim.

Atearam fogo em um carro de uma auto escola, no Jangurussu, e o instrutor ficou com queimaduras graves.

Incendiaram o caminhão que puxava o “trenzinho da alegria”, em Maracanaú.

Tocaram fogo em uma van de transporte escolar, no Mondubim.

Depredaram uma creche mantida por uma igreja evangélica, na Sapiranga.

Como vão sobreviver estas famílias e outras que tiveram seu ganha pão transformado em cinzas?

Mas os danos não são somente patrimoniais e físicos. São psicológicos. São direitos essenciais negados, como o direito de ir e vir e de ter fornecimento de água e luz.

Tenho um amigo que ao falar sobre os ataques ou qualquer coisa relacionada aos mesmos, tem de cochichar no telefone, pois é vizinho de porta de um olheiro de facção.

Outra, não dorme mais à noite com medo que invadam o condomínio simples em que mora na periferia e a queimem viva com seus dez gatos (já houve ameaças).

Uma terceira, que se sentia relativamente segura por fazer trabalho assistencial com filhos de criminosos, agora está em pânico pois quebraram todas as lampadas do seu bairro e os faccionários mandaram os trabalhadores pararem uma obra ao lado de sua casa, sob pena de levarem bala.

O transporte coletivo, que é serviço essencial e em grande parte integrado pela frota de ônibus, tem causado imensos problemas a usuários. O Sindiônibus manda recolher os veículos a qualquer hora, deixando a população na rua e a mercê dos bandidos. Pela manhã, muita gente chega atrasada ao trabalho e leva bronca sem ter culpa. Quando chega o fim da tarde não sabe se consegue ônibus para retornar para casa e no dia seguinte começa tudo de novo. Uma senhora cadeirante, de 44 anos, esperou um coletivo por mais de uma hora à noite no terminal do Conjunto Ceará. Ao não conseguir embarcar, ligou para o marido que veio buscá-la e voltou para o Bom Jardim empurrando sua cadeira de rodas, por ruas escuras e em um percurso que demora aproximadamente duas horas.

Em Taquara, município de Caucaia, desde o dia 8 que criminosos cortaram a fiação dos postes e as residências encontram-se sem energia elétrica. Ligações seguidas para a Enel, empresa responsável pela manutenção elétrica e que assumiu serviços após privatização do setor, se mostram inúteis. Situação se repete em outros locais de Fortaleza e Região Metropolitana. Tanto a Enel como o Sindiônibus alegam insegurança para a suspensão no fornecimento de serviços. O lixo também não foi recolhido em vários bairros.

Por toda a periferia, comércios são obrigados a fechar e o toque de recolher é imposto.

Servidores municipais trabalham com medo em postos de saúde e hospitais e a Prefeitura de Fortaleza está sendo cobrada a garantir efetivamente a segurança dos mesmos, coisa que ainda não fez.

Antes dos atuais ataques criminosos, as chacinas, a expulsão de famílias de suas casa, os assassinatos, a tortura e a crueldade se transformaram em rotina na periferia de Fortaleza e em cidades do interior.

E as facções não chegaram a essa posição de domínio sem a cumplicidade do Estado. Desde os desembargadores que venderam liminares para soltar traficantes e que foram “apenados” com aposentadoria compulsória, passando por policiais, agentes penitenciários e outros, a banda podre do Estado tem sua parcela de culpa e esta não é pequena.

O governador Camilo Santana, que hoje culpa presidentes da República por não terem dado atenção ao problema de segurança, agiu da mesma forma e praticou por um bom tempo a política da avestruz na área.

A barbárie mora ao lado e cada vez mais mostra sua cara. Não se sabe até quando os ataques continuarão. Mas para o “zé povinho”, já deu e sobrou.

Não tenho dúvidas que somente com aumento da repressão e política de encarceramento em massa a questão da criminalidade não será solucionada.

O problema da violência só se resolve com mudanças nas relações sociais, tão estruturadas pela cobiça, pelo capital e pelo poder. Nesse contexto, facilitar a posse de armas para os mais privilegiados nada mais é que ampliar a guerra contra os mais pobres, ou bem dizer, os “zé povinho”. Em um estado e em uma cidade marcados pela gritante desigualdade social, fazer dancinha simulando apontar armas, assim como fazem os endinheirados, é um prenuncio da barbárie que se avizinha.

HAROLDO BARBOSA é jornalista.

Haroldo Barbosa

Jornalista independente, assessor de comunicação, sócio da @abraji, apaixonado por software livre.

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