O VENDEDOR DE SOMBRINHAS E DE SONHOS APASCENTADOS

O VENDEDOR DE SOMBRINHAS E DE SONHOS APASCENTADOS ***

Antônio desembarcou em Fortaleza pela ponte dos Ingleses. Com a mulher, Maria, e cinco filhos, chegava de Caxias, Maranhão, onde contraíra casamento, filhos e os desafios que não lhe faltariam vida afora. Em Fortaleza, Maria trouxe-lhe os derradeiros rebentos de uma família completa, à salvo dos acasos da vida. Do saldo magro dos pequenos negócios feito uma loja de tecidos, em Caxias, trazia o que lhe valeria nos primeiros tempos de emigrante, na própria terra em que nascera.

Ainda alojado em uma pensão com mulher e a filharada buliçosa, deu-se a andar pela cidade em busca de ocupação nas artes do comércio. Para representante comercial, faltava-lhe a representação e a definição do ramo de negócios. Sobravam-lhe os ofícios de caixeiro-balconista que de nada ou pouca valia contava o canudo de bacharel em direito obtido a duras penas em Teresina, no Piauí.

Investira alguma sobra do capital consumido nas despesas da viagem em um modesto mostruário de sombrinhas e guarda-chuvas, mercadoria que lhe parecera útil e de demanda garantida nesta terra crestada de sol.

Sem rumo certo, deu com a loja “A Cearense”, da família Coelho, muitos eram eles e inamistosos com gente desvalida. Entrou, tirou o chapéu de massa, bateu os sapatos e procurou quem o pudesse ouvir.

Gente apressada, acossada pela clientela feminina, os balcões cobertos de peças de tecido, sedas e algodões, cambraias e gurgurão que casa de moda é mesmo assim, cheia de freguesas exigentes e boas de pagamento.

De espera, Antônio consumiu as suas frágeis esperanças daquela desobriga inoportuna, até que um dos da Casa o atendeu, já tomado de suspeitas sobre o que lhe haveria de propor a inesperada visita, de arranjo difícil, improvável aos negócios correntes da família:

“Sombrinhas, até poderia ser, “seu” Antônio, mas guarda-chuvas no Ceará, não são um negócio que valha investimento mínimo…”

Antonio teria que tentar outro ramo de subsistência. Advogar, sem escritório, desservido de livros ? Voltar às lides de caixeiro-viajante, nem pensar:

Ser professor, ensinar !

O mais difícil estava em encontrar do que fazer o seu magistério. Nada, entretanto, que a sua experiência e a coragem lhe negassem.

Enfrentou as opções que lhe foram sendo sugeridas. Autodidata, com a ajuda das anotações de classe e pela leitura dis jornais, enfiou-se pelo ramo do direito, sob orientação de advogado de nomeada no foro de Fortaleza. Declinou do convite para ensinar espanhol no Liceu do Ceará, na vaga de um cordobês que dera com os costados no Ceará, acabado de deixar a terra dos vivos.

Ampliou, aos poucos, o domínio do repertório essencial das leis e arrancou com decisão a engrenagem teórica das doutrinas, dos conceitos e preceitos que, estes valem mais do que toda a vã filosofia que cercam as leis e as conjecturas de justiça. Leu os códigos do começo ao fim; de boa memória quase os guardou de cor, como o fizera com Os Lusíadas, de Camões.

O tempo faria justiça aos seus esforços e à aplicação de uma invencível determinação.

De advogado a catedrático entre juristas, fez-se professor, comercialista, com livros publicados e referenciados por doutos publicistas pátrios. De tipógrafo, alçou voo como editor, lançou jovens escritores em uma terra de pouquíssimos leitores. Acompanhou-se de alguns bons talentos das letras e, com a douta cumplicidade de Fran Martins, criou o mais importante dos grupos literários do Ceará.

Com uma tipografia, comprada de tipógrafos arrependidos, fez-se editor, multiplicou contos e romances, descobriu talentos retraídos, e formou um círculo de leitores a que fazia ler e pensar.

Ali mesmo, na rua major Facundo, morou, e trouxe para espaços da frente da casa o prelo antigo, as caixas de composição, tipos e fontes e as resmas de papel, latas de tintas e cola. Toda a matéria prima de que são feitos os livros. As crianças e a mãe tratavam, como divertimento e passatempo, após o jantar, da cuidadosa tarefa de encadernação e costura dos cadernos… A casa ressumava o odor gostoso de papel novo e o cheiro das tintas de impressão.

Ensinou nos seus começos de magistério sobre tudo o que aprendera e, por acréscimo, o que sabia de oitiva. No Liceu e na Faculdade de Direito — fez-se Cavaleiro Andante para consagrar-se à ideia de uma universidade a construir-se no Ceará. Dela foi o fundador e reitor de todos os reitores em terras cearenses.

Homem de luta e de dissensos, quando necessários, tornou-se nos anos derradeiros de uma vida exemplar, uma reconhecida unanimidade. Pela obra e pelo caráter, pelo senso vital que trazia dos seus sonhos compartilhados com os cearenses.

Assim se fazem os Antônios.

Costumam nascer entre os bons, impõem-se na vida e na fila, não perdem a coragem em face das maiores privações e dos desafios da sorte. Não desistem, não se deixam assustar pelos contratempos… Não se ofendem com pouca coisa.

Esses Martins, de tantos e de tão fortes, constituíram, de verdade, um clã, cujas raizes estão ainda hoje plantadas nas quebradas do Cariri.

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.