Após 40 dias no deserto o Messias falou para os seus súditos. Foram pouco mais de 16 minutos de insinuações golpistas, afirmações falaciosas e contraditórias sem qualquer conteúdo programático como oposição. Foi mais do mesmo, mas já sem a perspectiva da caneta bic.
Começa dizendo “que acredita em Deus e que deve lealdade ao povo brasileiro, e que ele despertou o patriotismo no Brasil, e não é fácil enfrentar o sistema”.
A que sistema ele se refere? Num ato falho ele revela que gostaria de governar sem os pesos e contrapesos da democracia burguesa; gostaria de governar de modo totalitário.
Os sistemas sociais abrangem dois aspectos centrais: formas política e mediação social.
Do alto de sua ignorância da ciência política, Boçalnaro, o ignaro, somente admite um modo de mediação social, o capitalismo, e sequer cogita ou admite outro modo de produção social. O que vai na cabeça dele está implícito nesta alocução “não é fácil enfrentar o sistema.”
Assim, ele começa atacando a forma política democrático-burguesa pelo viés do pensamento totalitário, não o modo de produção social, ou seja, de produção de mercadorias pelo trabalho abstrato, outra mercadoria, que juntamente com outras categorias político-sociais (forma-valor, mercado, Estado, etc.,) formatam o capitalismo.
Para ele “sistema” é apenas forma política, e imaginando que somente pode funcionar debaixo de baionetas patrióticas, que nunca deu certo em nenhum lugar do mundo.
“Sou a chefe supremo das forças armadas; forças armadas são essenciais em qualquer país do mundo”, afirmou.
Os exércitos armados, com máquinas de guerra e força humana, ambos remunerados pelos impostos pagos pelo povo, foram historicamente criados
para dar sustentação ao domínio militar de um país ou países sobre outro ou outros, e implicitamente, provocaram a necessidade de criação de uma outra força militar protetora em cada país. Um mal que se alastra.
Assim, exércitos são um dado histórico, não ontológico da existência humana, e quando um dia tivermos uma relação mundial una, sem patriotada, e na qual cada região seja o artífice de sustentação e provimento das outras, numa relação de doação de excedente, e não de trocas quantificadas pelo valor, como determina o mercado, os exércitos serão prescindíveis.
Como dado histórico que é, tem ciclo de nascimento, vida e morte. Nos primórdios não tivemos exércitos, e nem os teremos, por desnecessidade, num futuro quiçá próximo.
Faço este registro porque o Presidente que está saindo considera que exércitos são eternos, sem compreender que um dia eles deixarão de existir, e espero que não seja por conta de uma hecatombe nuclear bélica, mas por conta de um estágio superior de civilidade nas relações humanas.
Há um ditado latino que diz “si vis pacem, para bellum” (se queres a paz, prepara-te para a guerra). Foi no império romano que se formaram as legiões romanas cuja função única era a guerra de pilhagem imperial; em contradita a este conceito belicista e que visa justificar o injustificável, eu digo: “se queres a paz, abomine a guerra e cultue a solidariedade sem exploração dos seres humanos de qualquer raça, lugar ou gênero sexual”. “As forças armadas são o último obstáculo para o socialismo”, afirmou. Mais uma vez demonstra a sua ignorância quanto à função das forças armadas, ao mesmo tempo em que pretende politizá-las.
O socialismo é uma forma política capitalista, que pretende se situar numa alternativa mais humanizada à social-democracia (é espécie deste último gênero), mas está circunscrita ao universo da mediação social capitalista, vez que não nega nenhuma das suas categorias, mas apenas deseja humanizá-las.
As forças armadas não têm função constitucional de defesa de programas políticos, mas de defesa da pátria, garantia dos poderes constitucionais, e por iniciativa destes poderes devem garantir a lei e a ordem (artigo 142 da Constituição Federal). É por isso que o mesmo artigo, em seu inciso V, determina que o militar em serviço ativo, não pode estar filiado a partidos políticos (entenderam Ives Gandra e Pazuello?)
Contraditoriamente, no mesmo diapasão, ele afirma: as forças armadas têm o dever de respeitar a constituição”. Ora, se defendem a constituição (o que é função legal), que baliza as funções acima referidas, como podem ser
doutrinariamente partidarizadas politicamente? Ele se desdiz por conta do primarismo político aliado ao seu desejo totalitário de governar sem freios.
Depois afirma: “não critiquem sem ter a certeza absoluta do que estão dizendo”. Ora, não é ele quem tem contestado repetidamente e por várias formas sem provas, e de modo inconsistente, a lisura das urnas?
Não é ele que no mesmo discurso no qual agradece os 58 milhões de votos recebidos nestas mesmas urnas desmerece de desqualifica as urnas que registraram 60 milhões para o seu oponente?
Boçalnaro, o ignaro, é quem induz o seu eleitorado a conclusões inconsistentes e depois critica, de modo indireto e como um mau e contraditório conselheiro aqueles a quem induziu à aceitação de equívocos por ele anunciados como se fossem verdades incontestáveis.
Após criticar o TSE, afirma: “Estamos vendo dia a dia absurdos acontecerem”, sem dizer explicitamente quais são os absurdos, reforçando a cantilena com a qual induziu dos seus apoiadores a dizerem o que não têm certeza.
Será que está se reportando ao questionamento das urnas que elegeram governadores, senadores, deputados federais e estaduais das suas hostes em grande número?
Ou será que está se referindo à punição de quem bloqueou estradas com caminhões tolhendo o direito constitucional de ir e vir?
Ou ainda, será que está se referindo à multa do seu partido aplicada por magistrado em função do princípio jurídico-processual da sucumbência próprio a quem judicializa questões temerárias sem provas que visam apenas tumultuar e questionar parcialmente o resultado eleitoral (dizemos parcialmente porque no primeiro turno das eleições o seu partido considerou válidas as urnas)?
Nós sabemos o que aconteceu nesses quatro anos… nós lutamos pela liberdade até dos quem nos critica”, continuou.
Todos nós sabemos e sentimos muito pelo que aconteceu, pois:
– somos campeões de mortes por covid em números relativos e terceiros em números absolutos, com quase 700 mil mortes por conta da oposição ao uso das vacinas e demora na compras destas ocorridas por pressão e clamor social;
– tivemos regressão na economia mundial e passamos a figurar na 12ª posição no ranking das economias mundiais (e já fomos a 8ª);
– tivemos crescimento pífio do PIB;
– observamos o avanço do desmatamento da Amazônia e desmantelamento dos órgãos ambientais;
– observamos o desmantelamento de órgãos culturais e de defesa dos silvícolas e de direitos humanos e de gênero;
– vimos estarrecidos alguém que se dizia outsider aderir ao fisiologismo político do centrão (e ainda se dizer membro deste desde sempre) e implantar a compra de votos oficializada pelo orçamento secreto que concedeu emendas parlamentares sem clareza de destinação e uso;
– o desastre da educação com a troca de 5 ministros, sendo o último deles flagrado numa relação promiscua com pastores evangélicos;
– vimos um ministro das relações exteriores se transformar em ministro do isolamento exterior;
– vimos um ministro da justiça, outrora paladino do combate à corrupção, exonerar-se do cargo denunciando a conivência governamental com o aparelhamento da máquina governamental policial e controle administrativo de órgãos de combate à corrupção;
– assistimos aos aumentos dos preços dos alimentos se tornarem insuportáveis para uma população que tem neste item alta percentagem dos seus gastos de orçamento doméstico.
E por fim, será que os bolsonaristas aderem à fala dele no que diz respeito à defesa da liberdade até de quem nos critica, quando seus adeptos agridem em lugares públicos de forma acintosa e injuriosa a imprensa; quem é adversário político; ou autoridade constituída?
Por que, meu Deus, o que eu fiz para merecer essa cadeira da presidência?… que é sacrificante para o meu corpo?… Disse ele como se tivesse recebido um pesado fardo. Mas não foi ele quem disse lá atrás que era contra a reeleição, mas assim mesmo se candidatou a continuar carregando esse fardo pesado? Dizem, que a mentira tem pernas curtas, mas no caso dele elas são completamente atrofiadas.
Quem decide o meu destino são vocês; quem decide o destino das forças armadas são vocês… afirmou em continuidade. Ora, o povo se manifestou nas urnas e optou majoritariamente por outro candidato. Mas Boçalnaro, o ignaro, somente considera povo os seus adeptos, e isto é próprio dos ditadores.
Fica implícito na frase sobre a definição pelo povo da função das forças armadas, já definidas na constituição burguesa, o desejo de apoio popular minoritário ao golpe militar, caso os militares embarcassem nesta canoa furada.
Nunca vi o povo se manifestar para um presidente ficar… reafirmou. Mas a que povo ele está se referindo? Àqueles que se postam recalcitrantes à frente dos QGs militares em vigília, e que apenas representam uma fração dos
58 milhões de eleitores adeptos da sua candidatura, mas esquece dos 68 milhões de eleitores que se lhe opuseram?
Boçalnaro, o ignaro, costuma se equivocar na análise de amostras públicas de apoio popular feita por grandes contingentes humanos à sua candidatura, sem considerar a totalidade da população brasileira.
Foi com base em análises parciais que achava que ganharia as eleições e criticava os institutos de pesquisas estatísticas mais confiáveis. Preferia acreditar naqueles que contratava para lhe dar os resultados que queria ver.
Não está nada perdido… só com a morte… vitória nas quatro linhas da constituição… dou minha vida pela pátria… vamos fazer a coisa certa… vamos vencer… são suas últimas palavras diante de uma pequena multidão que ansiava por falas mais objetivas de virada de mesa.
Enigmático, o candidato derrotado nas eleições, deixa no ar a esperança cada vez mais distante de um golpe antes da posse de Lula, vez que as tentativas de autogolpe lá atrás floparam solenemente.
Sei não, mas acho que os seus eleitores brocharam com esse tipo de discurso dúbio que ora bate e ora assopra.