O TEMPORAL E O HUMANO NA FOTOGRAFIA – Carlinhos Perdigão

 

Linguagem que remete fortemente à memória, a fotografia delimita aspectos na vida das pessoas dialetizando determinados olhares inesperados. Assim, a partir dela, a conexão com o passado se faz presente, indicando inclusive possibilidades de se vivenciar o futuro daquilo que importa para nós, seres humanos finitos, entronizados numa atmosfera ligada cada vez mais às tecnologias imagéticas. Mas nem sempre foi assim…
Lembro-me claramente de algumas praças de Fortaleza, incluindo a do boticário Ferreira, com seus muros altos e com a galeria em homenagem ao escritor Antônio Bandeira sempre às escuras e, infelizmente, com pouca gente; a do Carmo, com sua igreja ao mesmo tempo bela, simples e circundada por árvores centenárias; e a José de Alencar, desde essa época, anos 70, um espaço vital de circulação de pessoas no centro da cidade.

Nessa última praça foi moda em Fortaleza a presença do lambe-lambe. Havia vários deles “batendo” fotos em câmeras escuras improvisadas e entregando ao cliente – após poucos minutos – retratos 3×4 em pequenos tubinhos coloridos. Eu, quando criança, colecionei durante um tempo esse material. Achava bonito as cores dos tubos – aliás, acho ainda; e achava especial demais o conteúdo: as fotos revelavam minha família, pessoas essenciais na minha formação.
Com tias, tios, uma avó e primos morando no Centro, estávamos muitas vezes andando próximos daquela região. Inclusive, lembro-me bem de andar em ônibus elétricos, passeando nas imediações da praça do Carmo… Eles chamavam minha atenção por serem veículos grandes e silenciosos; além disso, o percurso que faziam era rigorosamente o mesmo, alimentados que eram por cabos em postes. Lembro-me inclusive das discussões na imprensa cearense quando estavam para ser desativados – um erro, como se veria pouco tempo depois, com a crise do petróleo em 1973.

Mas voltando ao lambe-lambe: marcou época! Hoje, percebo que esses artistas da imagem anteciparam em décadas o interesse pelas mídias sociais – aliás, eles faziam parte dos canais midiáticos daquele tempo! Dá até para comparar a atenção que as pessoas tinham com os tubinhos e que têm atualmente com seus celulares a divulgar fotos e vídeos instantâneos… A sensação é praticamente a mesma: eternizar momentos, fixar imagens. Mas há uma diferença: presentemente, vive-se bastante o virtual e esquece-se o presencial. Os tempos são outros… Ou seriam os mesmos, repaginados por novos (antigos) fatos? Além disso, sem purismos: a distância foi diminuída, mas também aumentada. Contradições de um mundo “moderno”? Sim, não e talvez. O leitor e a leitora decidem…

Outra história com o mundo da fotografia remete a uma experiência sensorial que tive já adulto. Explico: namorei durante um bom tempo com uma moça de Iguatu. Ela, naturalmente, durante a relação, me mostrou em fotos imagens pessoais e da família nessa cidade caririense, a qual eu não conhecia. Assim, com o álbum de fotos em mãos, narrou histórias que vivenciara em diversos espaços ali situados, dentre os quais na Associação Atlética Banco do Brasil.

Vários anos após o término do nosso relacionamento amoroso, fui convidado a tocar com a banda Zeppelin-Blues na mesma cidade. O evento fazia parte da recepção de um casamento de um casal de rockeiros amantes do Led Zeppelin e que gostavam do trabalho do grupo cearense. E o lugar do espetáculo musical era, exatamente, a AABB…
A partir daí ocorreram sensações surpreendentes. Fiz o show, e fui (re)conhecer o lugar no qual nunca havia – corporalmente – estado antes. Assim, passeando por suas dependências, eu sabia que próximo à piscina iria haver um espaço de convivência a céu aberto, que o salão tinha portas de vidro que se abriam para um jardim, que…
Foi um “déjà-vu” total! Vivenciei por vários momentos o meu namoro com a moça, lembrando as narrativas fotográficas dela, mas também minhas… Rememoriei pessoas veiculadas nas imagens, gente que eu não conhecia, mas que, presentes naquele mesmo espaço anos atrás, de alguma forma ali, naqueles momentos, diziam respeito a mim e aos meus sentimentos. Além disso, as memórias das fotografias se traduziam em reflexões sobre o que acontecera conosco, comigo e com a namorada, sobre o que era e o que não era… Ilusão real das imagens presentificadas… vida…

O mundo da arte permite igualmente conhecer pessoas sensíveis, bacanas e incrivelmente criativas. Uma dessas pessoas é o meu amigo Reginaldo Almeida, o querido Regim. Morador de Maracanaú, produtor cultural, artista plástico, poeta e fotógrafo com um olhar especial sobre o mundo, tenta traduzir nas imagens retratadas situações humanas e espaciais simples e, ao mesmo tempo, inusitadas.
Fui o responsável por lançá-lo nos palcos. Isso aconteceu quando dirigi o espetáculo poético-teatral “Os Urbanoides – amor e caos na cidade grande”, ocorrido em 2009 no centro Dragão do Mar e na Bienal do Livro do ano seguinte. A performance dele incluía uma posição fetal durante boa parte da atuação. Na época, ele mesmo me disse que estava nascendo, artisticamente, ali… Nascer num palco: a Arte como Mãe!!! Coisa de Regim!!!

Reginaldo tem o que se chama de uma alma amadora, e aqui não entram significados profissionais, mas sim ligados ao amor, de se amar o que se faz. É, por assim dizer, um menino grande, com seus versos afiados e afinados a debulhar um mundo de percepções em torno de diversos aspectos da vida, incluindo os culturais, os políticos e os humanos, sobretudo.
Dono de uma verve inteligente – genial mesmo, eu diria – e sensível, vejo no trabalho fotográfico que produz elementos de sua fala e de sua poesia, num casamento que, por mais coerente que seja, chega de uma forma extraordinária a mim. E o mais incrível em tudo isso é que, em seu percurso artístico, ele não busca, exatamente, a estética. Ocorre o contrário: sem se aperceber, ela é que vem até ele, num movimento que mistura e inverte – de forma surpreendente e incomum – o emissor e o receptor! Nesse sentido, talvez o nosso amigo não saiba a extensão do próprio talento, e isso o faz uma pedra rara no meio de artistas que buscam o sucesso formatado e pasteurizado! E ainda mais em tempos nos quais a essência das coisas é tão pouco vivenciada… Em resumo, vejo que a produção artística de Reginaldo é essencial nesses tempos! Mas Fortaleza cuida de uns, e de outros, não.
Em torno de todos esses aspectos e pessoas, veja que a fotografia une elos. Temporais e humanos, inclusive! Afinal, se a memória nos chega através dela, instaura-se um processo dialético de percepções e de diálogos com o mundo, os quais reafirmam nossa finitude infinda, fotografada, gravada e amada em nossas almas e em nosso corações.
Carlinhos Perdigão
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OBS.: texto dedicado ao universo do lambe-lambe em todo o mundo e ao querido Reginaldo Almeida, um cara do qual sou fã!

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