O tempo político tem suas próprias regras

Ouvi de Parsifal Barroso, certa feita, a reflexão mais inteligente que se poderia esperar de um político. Referia-se ao tempo político, o instante que não pode ser antecipado, nem postergado.

A sabedoria política não está na adesão à política, na entrada para a vida pública. Mas na escolha justa do momento para abandonar os encantos do poder político. Poucos sabem escolher a hora da retirada. Terá Parsifal sabido escolher a sua?

Júlio César foi afastado do poder numa arenga de senadores, espetado na ponta de um punhal vingador. Sem a necessidade de uma CPI e da retórica de iluminados acusadores, livre do vexame das acareações montadas pelos antigos aliados..

Hitler renunciou à vida em um bunker, combalido e derrotado, com uma bala bem colocada. Mussolini, pendurado pelos tornozelos, enxergou, tarde demais, as suas ideias de ponta-cabeça. Lincoln e Kennedy, vítimas do seu imenso prestígio, tiveram seu mandato interrompido, sem o julgamento prévio de um impeachment. Getúlio, com um tiro-renúncia, derrotou, defunto, os inimigos acumulados no tempo. Sarney fez-se presidente, por acaso, por cima de um trivial problema gastro-intestinal…

Na França, onde a política é jogo e exercício da inteligência e das ambições contraditórias, a transferência do poder ocorreu, muitas vezes, em decorrência de circunstâncias inesperadas. Até mesmo cômicas. O acaso e a necessidade se batem na política, e se completam.

Felix Faure, viúvo, nas suas noites solitárias no Palais de l’Elysée, recebia de quando em vez prostitutas e uma amante misteriosa para compartilhar consigo o peso da solidão do poder. Numa dessas noites, já exaurido de emoções, a libido em ponto morto, o presidente Faure sofreu um derrame e deixou a política de vez. E a vida. Excedera-se no atendimento aos apelos de recursos e manobras heterodoxos nas lides do amor.

Paul Deschanel, levava com frequência a sua presidência a percorrer as ferrovias de França, de trem. Indo em comboio presidencial para a Provence, o presidente, conclui o jantar, e recolhe-se, solitário, à cabine presidencial. Enfiado em seu robe de chambre distinto, socorre-se da toilette, antes de deitar, para as derradeiras abluções. Mas erra de porta. Abre, por má sorte, a porta externa de saída e vai cair fora do trem. A composição prossegue, ninguém daria conta da ausência presidencial, afinal a autoridade recolhera-se ao leito, supunha-se.

O presidente Deschanel recompõe-se, levanta-se na via férrea, percebe que está completa e absolutamente vivo e põe-se a andar, sem rumo certo. Por sorte, os trilhos o conduzem a um vilarejo perdido; ouve-se o alarido de um bistrô apinhado de habitués. Vai até lá, robe de chambre e chinelos. Ao se darem conta da aparição inesperada, os convivas provocam a figura, estranham a indumentária, pouco comum em bistrôs noturnos. Deschanel apresenta-se como presidente da República; os frequentadores do lugar riem, convidam o recém chegado para assumir a presidência ali mesmo… Alguns oferecem-se como ministros. A zombaria cresce diante do olhar aparvalhado da autoridade em robe de chambre. E lá passaria o presidente a sua noite mais divertida, não tivesse aparecido quem reconhecesse a ilustre figura pública.

Deschanel era um homem excêntrico, os seus cacoetes prenunciavam a loucura que o faria encerrar uma medíocre carreira política.

Temos, aqui no Brasil, uma invejável tradição, de fazer presidentes e desmontá-los quando começam a aborrecer os eleitores. Jango correu para o Uruguai e dedicou-se à criação. Como presidente e criador não fez figura. Medíocre como governante, mas astuto nas suas escolhas insensatas.

Bolsonaro dá a impressão de que pretende ser presidente remido— e procura ser impichado a qualquer preço. Quando não há um problema de que cuidar, cria um, nomeia ministros como Lula preenchia os “coletivos” de seus dois mandatos, de oitiva. E os demite antes de os nomear. Fosse cavalariano, dir-se-ia que o seu vocabulário e a lógica do seu discurso provinha das cavalariças dos regimentos montados. Não foi. Tem, entretanto, uma inclinação tocante para o martírio. Escolhe mal os auxiliares, tece urdiduras desconexas sobre questões de governo. Anuncia o que não sabe se cumprirá. Consegue ter como inimigos as figuras menos autorizadas, cerca-se das mediocridades que os medíocres dispensaram. Será o primeiro caso de um auto-impeachment, espécie de suicidio politico planejado.

Não tivéssemos destruído as nossas estradas de ferro, o exemplo de Deschanel poderia ser um solução propicia, neste momento de tamanhas apreensões…

Quem sabe, Bolsonário ainda não se anima a pular do trem em movimento?

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.

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