O sal da terra


Para os cristãos, hoje se inicia um tempo de contemplação dos mistérios contidos em sua fé. Na quinta-feira da Paixão, Jesus de Nazaré institui alguns dos fundamentos de seus ensinamentos: o mandamento novo, a lei fundamental – sua constituição – para todos os seus seguidores, norteando sua práxis da fraternidade universal; a eucaristia, o grande dom de si mesmo que ele deixou a todos que o buscarem de coração aberto; a oração sacerdotal na qual suplica ao seu Pai a unidade do seu povo.

Na mística cristã existe um duplo movimento. O primeiro é da interiorização onde a pessoa sente-se impelida a encontrar-se com Deus no seio de sua consciência; o segundo movimento é a abertura para a vida exterior tendo como escopo a construção da comunhão fraterna com todos os outros humanos com os quais convive, tendo como eixo motor o amor contemplado dentro de si. Esse amor recíproco vivido e revivido no dia a dia é capaz de tornar um grupamento humano em uma comunidade.

Para o biólogo chileno, Humberto Maturana, os animais possuem duas maneiras básicas e opostas de se relacionarem: a) aceitação mútua, confiança e ato de comungar e cooperar; b) oposição, desconfiança, luta pela força ou astúcia pelo domínio.

Enquanto os macacos têm sua maneira de viver centrada em posições hierárquicas, de manipulação mútua por meio da intimidação, em contínua luta por acesso privilegiado a sexo e comida, agregados em grandes bandos de 15 indivíduos ou mais, a maneira do Homo sapiens viver é centrada na ternura, sexualidade aberta, partilha, cooperação e intimidade em pequenos grupos de 07 a 08 membros. O autor relata que os humanos pertencem à linhagem definida pela maneira de viver centrada em torno das relações de cooperação e comunhão, enquanto macacos – como o chipanzé – pertencem a uma linhagem definida pela maneira de viver centrada em torno das relações de hierarquia, na dominação e submissão. Contudo, Maturana alerta que nos últimos séculos nosso espaço psíquico tem se assemelhado ao dos macacos devido ao desenvolvimento de uma cultura humana que privilegia a conduta de relações de domínio, de vantagens e privilégios assimétricos em relação aos bens produzidos material e culturalmente.

Toda sociedade humana se preserva e transforma na medida em que conserva e inova sistemas de reciprocidade através dos quais constantemente fluem e são trocadas entre categorias de sujeitos sociais: os seus bens, as suas pessoas e as suas mensagens. A reciprocidade, a troca e a aliança, eis o que nos fez passar do bando biológico ao grupo cultural, como lembra o antropólogo brasileiro Carlos Rodrigues Brandão. Eis a pedra fundamental do edifício social da cultura. E o princípio de tudo o que cria a uma só vez o ser humano, a sociedade humana e a cultura parte de algo absolutamente novo como experiência de vida no mundo. Parte de uma tomada coletiva de decisão iniciada em atos de renúncia de si e completada com um dar ao outro o que é meu, na espera de que este se “obrigue” a uma semelhante renúncia e a uma equivalente dádiva. Dar e receber implica não só uma troca material, mas também uma troca espiritual, uma troca entre almas. Ao dar dou sempre de mim mesmo. Ao aceitar, o recebedor aceita algo do doador, aproximando um do outro. Por mais que elas variem, as dádivas sempre reiteram que, para dar algo adequadamente, devo colocar-me um pouco no lugar do outro, entender, em maior ou menor grau, como este, recebendo de mim, recebe a mim mesmo.

Assim, não se criam novas estruturas, novas instituições e novas relações sociais com velhos seres humanos. Velhos somos todos nós que carregamos conosco a marca profunda, e diariamente renovada, da cultura do egoísmo, da competição predatória contra o outro, do consumismo desenfreado, do mimetismo, do culto fetichista às máquinas e à técnica, do materialismo vulgar que só reconhece como realidade o visível e o imediato. Uma cultura de comunhão, pelo contrário, é a da valorização da diversidade como base para a elaboração de projetos em comum e da colaboração para torná-los realidade. Esta é também a cultura do respeito ao outro, do acolhimento, da busca de complementaridades que enriqueçam o que sou e o que tenho, a fim de que, juntos e conscientemente solidários, sejamos mais e melhores do que temos e somos individualmente. Uma cultura de comunhão é também uma cultura do amor. Colocar o homem no centro da economia e da política requer um tipo de pessoa capaz de criar estruturas a serviço do ser humano.

Mas, se o sal perder o seu sabor, com que havemos de salgar?

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Editora Dialética); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .