O RIO DE JANEIRO CONTINUA LINDO…

Minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro, estou morrendo de saudade…”

Tom Jobim

Aos vinte e dois anos de idade, recém-casada, minha mãe começou a vida marital na cidade maravilhosa. Era o início dos chamados “anos dourados” da década de 50 do século passado, véspera da eleição de Getúlio Vargas que substituiria o Presidente militar General Eurico Gaspar Dutra na Presidência da República.  

O deslumbramento da Dona Dalvinha se devia ao fato de estar na capital do país, onde tudo rescendia a encanto, e em lua de mel com o amor de sua vida, meu pai, um mineirinho de Mariana, herói da segunda guerra mundial, que ela havia conhecido e por quem se apaixonara dois anos antes em Mossoró, RN.

Aquela cidade detentora de contornos geográficos deslumbrantes, capaz de figurar nos mais belos cartões postais do mundo, abençoada pelo Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara, tinha uma aura de felicidade que em tudo combinava em beleza escultural de suas praias, montanhas e com a alegria dos seus moradores.  

Até nos “barracões dos morros havia o cantar alegre de um viveiro, e as roupas comuns dependuradas pareciam um estranho festival,” como na canção “Chão de estrelas”, dos cariocas Orestes Barboza e Sílvio Caldas.  

Os cariocas são sabedores de viverem em uma cidade que exala musicalidade e é berço do samba, a nossa identidade cultural; têm gosto pelo bem viver e onde os velhos e novos baianos, desde Tia Ciata, Dorival Caymmi e Assis Valente, até João Gilberto, Caetano Veloso, Maria Betânia, Gal Costa e Gilberto Gil puderam fazer dela a caixa de ressonância de uma estética brasilianíssima.  

Foi nesse clima de encantamento que fui gerado como resultado da união de dois seres apaixonados que geraram uma criança saudável, nascida no Hospital da Aeronáutica, no Bairro Rio Comprido.  
Meu pai era um sargento da aeronáutica, pertencendo, portanto, ao baixo clero da força aérea, o segmento denominado “praças”, que diferentemente do oficialato, numa corporação claramente dividida em castas, tinha as restrições próprias de ascensão funcional superior e jamais chegaria à Presidência da República, até porque ele não tinha a menor pretensão de poder político.  

Minha mãe sempre se referiu ao Rio de Janeiro como sendo o lugar paradisíaco onde viveu os melhores e verdes anos de sua vida, ficando por lá durante quatro anos, até morar em vários estados, acompanhando o marido militar constantemente transferido de bases militares como é praxe na caserna.  

É assim que o Rio de Janeiro povoa meu imaginário tão bem cantado em prosa e verso pelos compositores brasileiros, como o pernambucano Antônio Maria, que compôs a bela música “Valsa de uma cidade”, cujos versos bem traduzem o sentimento de todos que por lá estão, e que dizem:
“Rio de Janeiro, gosto de você, gosto de quem gosta, desse Mar, desse Céu, dessa gente feliz”.

Apesar de todo os esforços da institucionalidade burguesa decadente em destruir o que é belo, a beleza de lá resiste, até para aqueles que foram forçados a desertar com imensa saudade da cidade maravilhosa, tangidos pelos ventos trevosos do arbítrio político, como o sociólogo Herbert de Sousa, que de lá viajou num rabo de foguete para o exterior, bem como na música de Gilberto Gil intitulada “Aquele Abraço”, que começa por afirmar que o “Rio de Janeiro continua lindo”…

Outros, presos no Rio de Janeiro e levados para a “casa da morte”, em Petrópolis, onde foram torturados e assassinados friamente (cerca de 20 presos políticos) evidentemente teriam uma percepção sombria de seus maus momentos na cidade do Rio de Janeiro, apesar da sua aura urbana e da maioria do seu povo ser de beleza estética e descontração prazerosa.  

Infelizmente a tradição do envolvimento do Rio de Janeiro com a contravenção e conluio policial é antiga. A música de Donga, de 1916, intitulada “Pelo telefone”, tem um verso que diz:
“O chefe da polícia pelo telefone, mandou me avisar; que lá na carioca tem uma roleta para se jogar”…

O problema é que àquela época o “malandro” carioca, apenas vendia bilhete falsamente premiado a um turista ambicioso e desavisado, e trazia apenas uma navalha no bolso para se defender dos enciumados maridos e amantes traídos, e agora portam metralhadoras AK 45 e vendem entorpecentes à elite que pode comprá-los e aos viciados pobres a quem escravizam pela dependência química e se tornam soldados do crime.

Em que pesa a contaminação de lixo urbano da Baía da Guanabara;  
– a falência das finanças públicas municipais e estaduais;
– a incrível sucessão de governantes corruptos, muitos soltos, alguns presos e cassados ou não, e de autoridades encastelados nas instituições públicas;
– a morte de inocentes por balas perdidas que sempre acham as cabeças de inocentes transeuntes vítimas das disputas entre a polícia e o crime organizado;
– as chacinas recorrentes nos morros cariocas;
– as inundações a cada ciclo das águas de janeiro a março fechando o verão;  
– etc., etc., etc., o Rio de Janeiro continua lindo…

De minha parte, um cearensioco assumido (mistura de cearense com carioca por fraternal adesão chancelada por lei oficial que me concedeu o título de cidadania fortalezense, e certidão de nascimento do Rio de Janeiro), prefiro manter o encantamento pelo Rio de Janeiro que me foi transmitido por minha mãe, a acreditar que por lá vigora um processo de septicemia infecciosa na vida político-social e policial, ainda que todo dia e reiteradamente se constate a existência e continuidade de tal enfermidade destrutiva.

O meu Rio de Janeiro é o mesmo de Donga, João da Baiana, Sinhô, Pixinguinha, Cartola, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento, Carlos Cachaça, Chico Viola, Mário Reis, Noel Rosa, Wilson Batista, Heitor Villa-Lobos, Machado de Assis, Euclides da Cunha, João do Rio, Chiquinha Gonzaga, Joaquim Callado, Ernesto Nazareth, Wilson Batista, Ismael Silva, Heitor dos Prazeres, Vicente Celestino, Orlando Silva, Araci de Almeida, Orestes Barboza, Sílvio Caldas,

Braguinha, Dom Pedro II, a portuguesa Carmem Miranda, que por aqui chegou com meses de nascida e se tornou um ícone representativo da brasilidade nos esteites e mundo afora, Almirante, Ciro Monteiro, Jamelão, Neguinho da Beija Flor, os mineiriocas Ari Barroso, Ivo Pintangui, e Zuenir, ventura, Seu Delegado (o dançarino), Valdir Azevedo, Valdir Calmon, Altamiro Carrilho, o cearensiocas César de Alencar e Ed Lincoln, Tom Jobim, Haroldo Costa, a ucranioca Clarisse Lispector, dos botafoguenses Vinicius de Morais, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, o tijucano de BH Milton Nascimento, o cachoieirioca Roberto Carlos, os pernambucuriocas Bezerra da Silva, Austregésilo de Athayde, longevo presidente da Academia Brasileira de Letras e os irmãos Nelson Rodrigues e Mário Filho, o primeiro, um dos maiores dramaturgos do Brasil, e o outro baluarte da construção do Estádio do Maracanã que recebeu seu nome, Oscar Niemeyer, Silvio Santos, Cauby Peixoto, Ângela Maria, Emílio Santiago, Sérgio Cabral (o pai), Dona Ivone Lara, Jô Soares, os maranguapiocas Chico Anísio, Elano de Paula, Lupe Gigliotti e Zelito Viana, Monarco, Garrincha, Zizinho, Ronaldo Nazário, Romário, Marcelinho Carioca, Djalminha, Domingos da Guia e Ademir da Guia, Aniceto, Martinho da Vila, Moreira da Silva, Dicró, Galvão Bueno, Arnaldo César Coelho, os maranhenciocas Ferreira Gullar, Alcione e Joãozinho Trinta, Emilinha Borba, o acrioca João Donato, o paraensioca Billy Blanco, o paulistioco maestro Erlon Chaves, e as cantoras paulistiocas irmãs Dircinha e Linda Batista, Paulo Gracindo, Tônia Carrero, Cecil Thiré, Odete Lara, Norma Benguel, Zilca Salaberry, Wilza Carla, Herivelto Martins, a paulistioca Dalva de Oliveira, Jece Valadão, o carioca da Moldávia Samuel Wainer, e o ucranioca Adolfo Bloch, o espiritioca Carlos Imperial, os campeoníssimos do Botafogo Carvalho Leite, Nilton Santos, Gerson, Jairzinho e Paulo César Caju, Elton Medeiros, Arlindo Cruz, Almir Guineto, Dudu Nobre, Jorge Aragão, Bira Presidente, Jovelina Pérola Negra, Wilson Simonal, Paulinho da Viola, Zico, Roberto Dinamite, Aldir Blanc, Herbert de Sousa, Henfil, Dolores Duran, Maysa Matarazzo, Elizeth Cardoso, Ronaldo Bôscoli, as irmãs vitoriocarioquíssimas Nara e Danuza Leão, Sylvinha Telles, Carlinhos Lira, Roberto Menescal, o Paulistioca Luiz Carlos Miele, Carlinhos de Jesus, Ana Botafogo, Tim Maia, Jorge Ben Jor, Erasmo Carlos, Zé Kéti, Baden Powell, Gonzaguinha, Paulo Silvino, Cazuza, Rogéria, Roberta Close, Clóvis Bornay, Ibrahim Sued, Jorginho Guinle, Augusto Boal, Miguel Falabella, Cláudia Jimenez, Marília Pêra, Marcelo D2, Anita, Ludmila, Claudinho & Buchecha, Fernanda Abreu, Evandro Mesquita, Mussum, a cearensioca historiadora Isabel Lustosa, Toni Garrido, Zezé Motta, os Mineiriocas Milton Gonçalves, Grande Otelo, o  mineirioca Aguinaldo Timóteo (batafoguense) e Carlos Drummond de
Andrade, Marielle Franco, e Nélida Cuiñas Piñon, para citar apenas pouco mais de 160 grandes nomes, numa lista que caberia mais outros 160 que os leitores e parentes vão me perdoar a omissão dos seus nomes vez que todos eles formataram a leve alma carioca que serve de referência à brasilidade.  

Esses, juntamente com tantos outros anônimos cariocas que lutam pela vida honestamente, me representam como artífices da cidade maravilhosa; esses outros do noticiário criminal de ontem e de hoje, apenas me repugnam.

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;