O REINO DA TERRA

Iniciei o ano em meio aos familiares queridos e a livros, lá na terra do padre Cícero Romão Batista. Fui presenteado com os exemplares “Josué de Castro, vida e obra”, da editora Expressão Popular; “Movimentos Populares no Tempo de Jesus”, da editora Paulus; “O capitalismo como religião”, da editora Boitempo. Além das leituras, conversas e brincadeiras em família, recebi algumas mensagens entre as quais destaco as do padre Renato Chiera, um filho de camponeses da região do Piemonte (Itália), em sua missão natalina em Guiné Bissau (África), com relatos estupendos e fotos maravilhosas do encontro que mantiveram com as belas pessoas das terras africanas. Padre Renato, desde 1978, deixou a cátedra de filosofia para morar nas periferias existenciais e geográficas da Baixada Fluminense (Brasil), atraído pelos pobres, resultado dos sistemas político-econômicos de exclusão humana, dos quais há dois mil anos Jesus de Nazaré proclamou em seu famoso Sermão anunciando ser deles o reino do céu.

Da leitura do livro sobre os movimentos populares no tempo de Jesus, é muito rica a análise histórica sobre o regime político de Herodes (38 d.C.). Era um arrecadador implacável dos impostos – ordinários e extraordinários – cobrados pelo Império romano. O historiador Josefo diz claramente que depois de a nobreza local da Galileia haver passado para o seu lado, Herodes agiu com grande força contra a população camponesa. Portanto, para os camponeses daquela época, a nobreza e Herodes eram seus inimigos expressos. O regime herodiano foi realmente eficiente para a classe dominante, mantendo um controle social rigoroso e opressivo por meio de uma rede de fortalezas em todo o reino, um numeroso exército, uma polícia de segurança e um amplo sistema de informantes. Consequentemente, apesar das duríssimas exigências econômicas impostas pelo regime herodiano à população camponesa, era extremamente difícil fazer-lhe uma oposição ativa. Interessante notar que no único encontro, registrado pelo evangelista Lucas (23, 8-17), Herodes alegrou-se muito por ver Jesus face a face, durante o seu processo condenatório, pois há longo tempo desejava conhecê-lo. Dirigiu-lhe muitas perguntas, mas Jesus nada lhe respondeu. Assim, Herodes com sua guarda escarneceu publicamente dele e o reenviou para Pilatos. 

Por sua vez, no livro sobre Josué de Castro, o grande cientista brasileiro, autor de duas obras gigantescas, “Geografia da Fome” e “Geopolítica da Fome”, eu destacaria a reflexão contida no artigo “A reivindicação dos mortos”. Josué atenta para o fato de a Primeira Liga Camponesa do Nordeste brasileiro, fundada em 1955 d.C., pelo camponês João Firmino, morador do Engenho Galiléia, nasceu não para defender os direitos de vida daqueles bagaços humanos esmagados pela roda do Destino da mesma forma que a cana-de-açúcar é esmagada pela moenda dos engenhos, mas para defender os direitos dos mortos. Galiléia, como lembra Josué de Castro, é o mesmo nome da Terra Santa, onde Jesus pregou pela primeira vez a doutrina revolucionária da igualdade e da fraternidade humanas, mas que ainda nesses dois mil anos não conseguiu penetrar de verdade na alma e na vida concreta de cristãos que dominam o mundo. Numa entrevista a um jornal local, o camponês Firmino respondeu que “antes da Liga, quando um de nós morria, o caixão era emprestado pela prefeitura. Depois que o corpo era levado para a vala comum, o caixão voltava para o depósito municipal. Hoje a Liga paga o enterro e o caixão desce com o morto”. No início, portanto, a Liga era uma sociedade civil beneficente, de auxílio-mútuo, para ajudar seus membros a morrerem com decência. Somente com a chegada do advogado Francisco Julião, ao aceitar defender as 140 famílias de camponeses na luta judiciária contra a sua expulsão do Engenho Galiléia, é que a consciência daqueles camponeses começou a adquirir uma nova visão sobre sua condição de explorados. Julião verificou que o Código Civil com o qual fundamentava sua defesa havia sido elaborado para defender o direito dos cristãos ricos, enquanto o Código Penal é que fora concebido para ser aplicado contra os cristãos pobres. Vendo que perderia na arena judiciária, Julião iniciou a luta no campo político, denunciando publicamente os crimes hediondos do latifundiarismo cristão brasileiro. E foi assim que as Ligas Camponesas começaram a espalhar-se por toda a região, com a criação de vários núcleos, transformando-se em instrumento de luta política libertadora daquelas gentes.

Por fim, do livro “Capitalismo como religião”, o sociólogo alemão Walter Benjamin dispara um torpedo, lá no ano de 1921, premonitório, diante da idolatria do mercado em plena ascensão: “a religião capitalista conduz a humanidade para a casa do desespero”. Como Benjamin entende ser o capitalismo uma religião? Naquele momento ele já conseguia identificar alguns traços característicos, que no tempo presente apresentam contornos bem mais definidos. Primeiramente, diz o autor, o capitalismo é uma religião puramente cultual, talvez a mais extremada que já existiu. Nele todas as coisas só adquirem significado na relação direta com o culto. Em segundo lugar, o capitalismo é a celebração de um culto infinito, sem trégua, combatendo sem piedade seus infiéis. Para ele todos os dias são dias “de festa”, dias santificados de adoração ao deus mercado. E em terceiro lugar, esse culto em vez de expiar os pecados, é um culto culpabilizador, é o esfacelamento do ser diante da monstruosa ausência de transcendência, até que seja alcançado o estado de desespero universal.

Essas três leituras me ajudaram a ampliar a minha percepção da dinâmica do reino da terra: reino onde os ricos, de qualquer religião, procuram submeter continuamente os pobres.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .