O que realmente importa? Por Alexandre Aragão de Albuquerque

Nestes dias finais do ano é comum para algumas pessoas voltarem seus olhares para o tempo de uma forma mais contemplativa. Procuram fazer uma espécie de retrospectiva cronológica com o objetivo de demarcarem uma nova etapa em suas existências, estabelecendo novos propósitos para o tempo que há de vir. Foi o que ocorreu em uma conversa com uma grande amiga neste período natalino na qual ela expressa não mais acreditar na divindade de Jesus Cristo, preferindo olhar para Jesus como um grande ser humano, possuidor de uma prática coerente com sua mensagem.
Diante da novidade a mim apresentada, discorri muito brevemente dizendo-lhe que talvez o mais importante não fosse saber se Jesus é ou não um deus, mas procurar conhecer o Deus que ele anuncia e pelo qual deu a própria vida a ponto de gerar um movimento popular capaz de mover corações e mentes em torno de sua causa e de seu ensinamento, chegando até os nossos dias.
De fato, tudo o que se pode dizer sobre a vida histórica de Jesus tem a marca da incerteza já que os narradores evangélicos eram seus partidários, não tendo uma preocupação historiográfica conforme atualmente damos sentido a este termo, mas estavam imbuídos de forte apelo teológico. Além disso, os escritos foram produzidos muito tempo depois da morte de Jesus, como ocorre com os evangelhos de Mateus e de Lucas, redigidos provavelmente no ano 80 d.C. Essas narrativas representam uma evolução já avançada de uma tradição consolidada por uma transmissão oral que, como se sabe, é muito sensível aos sabores do tempo.
Contudo, se pensarmos no ano de 325 d.C. encontraremos um fato realmente novo: a realização do primeiro Concílio Ecumênico da história do cristianismo. Foram convidados pelo próprio Imperador Constantino que acolheu os bispos conciliares em sua residência de verão em Niceia, próximo a Constantinopla. Aqueles homens do povo foram tratados como senadores do Império romano, com direito a honras militares e protocolares. Nesse concílio são formulados os primeiros dogmas da Igreja. Niceia fala palavras definidoras e grandiloquentes sobre o carpinteiro Jesus de Nazaré: Deus-todo-poderoso; Deus de Deus; Luz da Luz; Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. Mais tarde surgirão novos títulos: Santíssima Trindade; Maria Santíssima; Santíssimo Sacramento. A partir de então, a Igreja se enche de santidades, eminências, excelências e dignidades, adotando o estilo pomposo, triunfal, superlativo e arrogante da linguagem oficial romana.
Como assinala o historiador católico Eduardo Hoonaert, “não se trata só de linguagem, mas da totalidade de um novo modo de inserção da Igreja na sociedade e na vida das pessoas. Na arquitetura e na liturgia, nas vestes clericais e na formulação dos textos, na cotidianidade das paróquias, na iconografia e nas artes, na formação das lideranças, no ensino da moral, no acompanhamento diário da vida das pessoas e até na marcação de tempos e espaços transparece um Jesus que está nas mãos da instituição: nós o definimos, nós falamos em seu nome, ditamos o que ele tem a dizer”. Jesus de Nazaré é modificado e aprisionado por um sistema de poder.
Diante desse Jesus oficial construído ao longo da história, o Jesus da primeira tradição, aquele de Nazaré, pobre, trabalhador, carpinteiro, andarilho, solidário com os camponeses famintos de sua época, parece sair diminuído: ele perde a auréola, o trono, o cetro, a glória, os louvores, a genuflexões e reverências. As pessoas acostumadas pelos séculos e séculos da tradição dominante com um Jesus Glorioso e com sua Igreja toda poderosa, sentem um desencanto ao se encontrarem com Jesus Nazareno, um pobre com os pobres.
No Brasil de 2018 não é diferente, acontece o mesmo. Há uma divisão clara no meio da população brasileira que não se reduz apenas a uma questão de classe dominante e classe oprimida. Há no seio de grande parte desse povo uma fratura cultural de matriz religiosa caracterizada pela visão que tem de Jesus: uns buscam a Jesus de Nazaré, amigo dos excluídos; outros correm atrás daquele Jesus Glorioso para que justifique suas formas excludentes de ver e de agir diante dos seus semelhantes, legitimando um sistema de concentração de poder e de riqueza na mão da minoria. A crise política brasileira se estende em uma crise cultural. Novos tempos e novos desafios que nos levam a pensar sobre o que realmente importa para nossa democracia.

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .