Hoje em dia as guerras não são as mesmas. O século XXI é palco de guerras irregulares ou guerras não convencionais (GNC). Mas o que é uma GNC?
Em vez de um conflito militar formal, com tanques e baionetas tomando as ruas e praças públicas, onde há a superioridade das armas, na GNC existe a superioridade dos movimentos cujo inimigo não tem condições de correr atrás. Para isso é importante definir duas ações básicas. A primeira busca criar e reforçar a percepção da população sobre a legitimidade da causa para derrubar o adversário, por exemplo, “a luta contra a corrupção”. A segunda ação desenvolve-se simultaneamente visando a corroer a percepção da população sobre a legitimidade do oponente no poder, para demonizá-lo, ou seja, identificá-lo como o causador de todo o mal vigente. Portanto, o que caracteriza uma GNC é a ênfase na utilização de métodos não convencionais de guerra e meios para desgastar e cansar o adversário a ponto de torná-lo irrelevante para a população. O foco é corroer o oponente para tomar-lhe o mais facilmente o poder político.
Ela, com grande frequência, desenvolve-se sem ser declarada e até mesmo sem ser percebida. Por vezes, é oculta. Como bem observou Newmann, os golpes modernos são de natureza política, econômica, psicológica e, apenas como último recurso, militar. Ele acontece num espaço amplo, é o golpe do espaço ilimitado no qual os meios de comunicação exercem um papel essencial para “contaminar” o espaço social: sua função é a de unificar a narrativa construída para corroer publicamente o adversário, deslegitimando-o diante da população. O golpe moderno é uma guerra onde os políticos e os meios de comunicação têm supremacia sobre os militares.
A partir do momento em que vão conquistando o apoio da população, esses golpistas-não-convencionais iniciam movimentos de violência simbólica e física, buscando ampliar ainda mais a percepção de legitimidade de sua causa. Essa violência pode ser perpetrada por grupos organizados, instituições da sociedade ou pelo aparelho militar ligado ao golpe não convencional em andamento. E dependendo do grau de manipulação da população, tanto mais violentas serão as ações para alçar mais apoio.
O escritor Pepe Escobar registra em um artigo que no manual das Forças Especiais para Guerra Não Convencional dos EUA, em 2010, consta o seguinte: “A intenção dos esforços de GNC dos EUA é explorar vulnerabilidades políticas, econômicas e psicológicas de um poder hostil, mediante o desenvolvimento e sustentação de forças de oposição, para alcançar os objetivos estratégicos dos EUA. Para o futuro previsível, as forças dos EUA se engajarão predominantemente em operações de guerra não convencional”. Importante destacar que “hostil” não se aplica apenas a potências militares; qualquer Estado que se atreva a desafiar algum interesse da ordem Washingtoncêntrica pode ser declarado hostil.
Assim, dado que os BRICS são o único real contra-poder ante a ordem Washingtoncêntrica, como os EUA estão agindo para corroer os BRICS?
Primeiramente, jogaram tudo contra a Rússia, de sanções a mais total demonização; de ataque contra a moeda russa até uma guerra dos preços do petróleo, que incluiu até algumas tentativas de iniciar uma “revolução primaveresca” nas ruas de Moscou. E para outro integrante no grupo BRICS, haveria de ser desenvolvida uma estratégia mais sutil. O que nos leva à complexíssima Guerra Não Convencional que se vê hoje lançada com o objetivo de conseguir a mais massiva e real desestabilização política e econômica do Brasil.
No referido Manual dos EUA, segundo Escobar, lê-se que é essencial fazer balançar as percepções de uma vasta “população média não engajada”, até que esses “não engajados acabem por voltar-se contra os líderes políticos”. O processo inclui de tudo, de “apoiar grupos insurgentes” (como foi feito na Síria) até implantar “o mais amplo descontentamento, mediante propaganda e esforços políticos e psicológicos para desacreditar o governo” (como no Brasil). E, à medida que uma insatisfação vá crescendo, deve-se intensificar a propaganda e a preparação psicológica da população para ir às ruas, como ocorreram nas manifestações da Paulista em 2015.
Não surpreende que São Paulo tenha sido convertido em epicentro da GNC contra o Brasil: o estado mais rico do Brasil, onde está também a capital econômica e financeira da América Latina, é o nó chave numa estrutura de poder interconectada nacional e internacionalmente. O sistema financeiro global centrado em Wall Street – e que governa virtualmente todo o Ocidente – simplesmente não poderia de modo algum permitir qualquer movimento de soberania nacional, num ator regional com a importância do Brasil.
Acontece que Edward Snowden vazou aquelas práticas de espionagem da Agência de Segurança Nacional dos EUA. No Brasil, a ASN-EUA espionava a Petrobrás por todos os lados e há muito tempo. E aí, eis que, de repente, sem mais nem menos, um juiz regional do Paraná, baseado numa única fonte – depoimento de um corretor clandestino de câmbio no mercado negro (“doleiro”) – teve acesso a uma grande lista de documentos da Petrobrás. Wikileaks também revelou, num telegrama ainda de 2009, como o Washington classificava o Brasil como “ameaça à segurança nacional dos EUA”, porque poderia projetar um submarino nuclear; como a empresa construtora Odebrecht estava se tornando global; como a Petrobrás desenvolvera na própria empresa a tecnologia para explorar os depósitos de petróleo do pré-sal, a maior descoberta de petróleo confirmada desse início do século 21, da qual o Big Oil dos EUA foi excluído por, ninguém mais, ninguém menos, que o presidente Lula.
Portanto, seria inocência pensar que o golpe em curso no Brasil tem apenas uma origem interna. Não. Esse golpe é principalmente um movimento geopolítico que busca a retomada da hegemonia estadunidense sobre a região sul-americana na qual o Brasil despontava, a partir dos governos Lula-Dilma, como expressiva liderança regional soberana em virtude da multilateralidade da política externa implantada por esses governos, tornando-o um protagonista atuante da construção de uma nova ordem mundial, multipolar e mais democrática, menos dependente dos interesses do imperialismo estadunidense.