O QUE É MESMO EDUCAÇÃO ESPECIAL DE SURDOS?

A Educação Especial de Surdos nasceu na Europa após o Congresso de Milão (1885). No Brasil, nasceu em 1911. Num caso e noutro, como em todo lugar, surgiu quando foi proibido o uso da Língua de Sinais naquelas escolas cujo modelo foi tomado da Instituição Nacional de Surdos Mudos de Paris (Institution Nationale de Sourds-Muets), fundada em 1755 pelo Abade de l’Épée. Ao contrário do que se costuma lê nos atuais manuais de Educação Especial, a Instituição do Abade se diferenciava radicalmente do Hospital Geral, lugar e instrumento de internamento e reclusão de doentes mentais e pessoas com deficiência. De fato disciplinadora, ela tinha a mesma natureza dos órgãos públicos e filantrópicos voltados à saúde dos trabalhadores. E, como estes, expressava a necessidade de produção da força de trabalho numa sociedade que crescentemente se orientava pela lógica da economia mercantil. (E a mercadoria, sabemos, tem seu valor no trabalho necessário para constituí-la). Ela visava não a segregar do – mas disciplinar (preparar, potencialziar) para o – trabalho social, como trabalho assalariado.

A escola fundada por de l’Épée ensinava a crianças surdas Francês escrito, Matemática e outros saberes, com base na Língua de Sinais que ele conheceu e aprendeu com os Surdos pobres de Paris, em sua maior parte filhos ou descendentes de camponeses expulsos de suas terras para as cidades durante esse largo período de acumulação primitiva do capital, que antecede e prepara a revolução industrial e a hegemonia econômica das relações sociais capitalistas. O Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), fundado no Brasil como Imperial Instituto de Educação de Surdos Mudos, em 1857, no Rio de Janeiro, também desenvolvia uma proposta educacional institucionalizada com base na Língua de Sinais brasileira e na Língua Portuguesa escrita.

A partir da proibição da Língua de Sinais nas escolas, em todo o mundo as Escolas de Surdos se tornaram Escolas Especiais oralizadoras (no Brasil, o INES foi a primeira a ser transformada nisso), nas quais a REABILITAÇÃO substituiu o ENSINO. E assim a Educação Especial de Surdos surge como a especialidade voltada para o desenvolvimento desse tipo de não-Educação que transformou as escolas em Centros de Reabilitação orofônica.

A Educação Especial é, portanto, historicamente inimiga da Língua de Sinais, do Bilinguismo Surdo e da Cultura Surda. A Educação Especial se constituiu em e se mostrou um dispositivo de dominação e controle dos Surdos pelo Estado, pela Medicina, pela Pedagogia e pelas empresas de aparelhos auditivos, sob o argumento da universalização dos hábitos e das relações (chame-se essa universalização de reabilitação, depois integração ou, agora, inclusão).

A chamada Educação Especial na Perspectiva Inclusiva é continuidade direta da velha Educação Especial inimiga da Língua de Sinais como língua-base do processo educativo de Surdos. Como diz mais ou menos Foucault, o controle sobre os sujeitos sai agora de instituições específicas para: o “meio”. A atual lógica de disciplinamento e controle – que o filósofo francês chama de segurança – não é mais tópica. Para o exercício do poder das instituições sobre os Surdos, isso significa: tirá-los das Escolas Especiais oralizadoras, onde se aglutinavam e indisciplinadamente falavam em Língua de Sinais, para as novas escolas lusófonas “inclusivas”, onde devem estar separados uns dos outros, em posição de isolamento e subalternização linguísticos. O instrumento para isso é uma admissão astuciosa da Libras. Conquista de 90 anos de lutas dos Surdos, a legalização da Libras em 2002 foi apropriada e desviada para fins “ressocializadores”, “recuperadores” pela Educação Especial, que se diz chama agora Inclusiva.

Também a Escola lusófona inclusiva é a continuidade da antiga Escola Especial oralizadora. Nesses dois tipos de escola, nascidas ambas da Educação Especial contra escolas fundadas na Língua de Sinais, a Língua Portuguesa é a língua de ensino e convivência. É a língua fim. A Escola lusófona inclusiva é uma escola em que o Surdo é aquele que “não ouve”, e que, por isso, precisa de apoio do intérprete como nós outros precisamos, por exemplo, de rampas. Como se língua e estrutura arquitetônica tivessem o mesmo estatuto na conformação e no desenvolvimento do pensamento!

A ideia da Educação Especial é que aos poucos a Libras não seja necessária. Crianças oralizadas no consultório, protetizadas pelas grandes empresas e ressocializadas pela escola lusófona não precisarão de Libras no futuro, assim planejam empresas, clínicas e consultorias pedagógicas. Ou ainda, a Libras deixará de ser uma língua real, viva, de comunidades culturais diferentes. Foi assim que os jesuítas fizeram com o Tupi. Aprenderam a língua, deram-lhe escrita e gramática, construíram escolas com base nela. Colocaram as crianças indígenas em antagonismo com sua cultura comunitária, os filhos contra os pais, a nova fé cristã contra a tradição cultural da aldeia. No Brasil, a colonização foi astuciosa: ela procurou integrar índios e negros, não dizimar nem segregar. O resultado é que o Tupi morreu e os índios foram trabalhar nas cozinhas dos brancos.

Todo o atual discurso da “inclusão” é jesuítico: nos métodos e nos fins. Com uma pequena diferença: os jesuítas sabiam o Tupi. Os da Educação Especial não sabem Libras, não conhecem métodos de educação de Surdos, nada! São por isso muito mais violentos no seu exercício do poder conquistado com o discurso inclusivo que seus congêneres colonizadores dos primeiros séculos. Até mesmo porque eles querem fazer em poucos anos o que aqueles fizeram em alguns séculos.

Por isso, foi tão importante a saída da Educação de Surdos da Educação Especial para uma modalidade específica na LDB: Educação Bilíngue de Surdos! É o 13 de maio de 1888 dos Surdos. E o que vai acontecer depois daqui? O que vai acontecer é agora objeto de disputa. Contra a abolição, os senhores de escravos deram o golpe de 15 de novembro de 1889 e mantiveram seu poder sobre a terra. A Educação Especial lutou contra a aprovação da Educação Bilíngue de Surdos na LDB. E hoje luta para ela não dar em nada. Querem manter o monopólio latifundiário sobre os discursos, os conceitos e as verbas, bem como o poder sobre os corpos, a língua e a Educação dos Surdos.

Nossa luta – de Surdos, pais, professores e intérpretes – é para impedir isso.

Emiliano Aquino

Professor Associado da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Doutor em Filosofia (PUCSP), com Estágio Pós-Doutoral na Universidade de São Paulo (USP). Autor de *Reificação e linguagem em Guy Debord* (EdUece, 2006) e *Memória e consciência histórica* (EdUece, 2006), além de capítulos de livros e artigos de filosofia em revistas especializadas. Militante socialista independente.

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Emiliano Aquino

Professor Associado da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Doutor em Filosofia (PUCSP), com Estágio Pós-Doutoral na Universidade de São Paulo (USP). Autor de *Reificação e linguagem em Guy Debord* (EdUece, 2006) e *Memória e consciência histórica* (EdUece, 2006), além de capítulos de livros e artigos de filosofia em revistas especializadas. Militante socialista independente.

1 comentário

  1. Sonha Maria Oliveira da Silva

    É uma pena que o nosso país não valoriza a inclusão, pois para haver uma educação de qualidade é necessária toda equipe pedagogia desde o porteiro até a merendeira fazer parte dessa luta.