O primeiro de maio

Na genialidade de seus versos, Chico Buarque de Holanda canta o primeiro de maio como um encontro amoroso do operário com a tecelã pelo qual eles vão tecendo no seio do ventre feminino a humanidade de amanhã. Um amanhã que seja capaz de superar todas as injustiças perpetradas no hoje contra homens e mulheres, no qual lhes sejam reconhecidos e garantidos todos os direitos individuais e sociais de modo universal.

Mas quem é o humano?

É um sujeito. Um ser aberto ao mundo. Um ser que possui uma historicidade. Como tal, é portador de necessidades, desejos e projetos. Possui uma determinada origem familiar, ocupa um determinado lugar social e encontra-se inserido em relações sociais. Assim, uma condição fundamental para reconhecer-se como sujeito é o necessário reconhecimento da subjetividade dos outros seres humanos. Ao mesmo tempo é um ser singular, portador de uma história pessoal, que interpreta o mundo e dá-lhe sentido da mesma forma que dá sentido à posição que nele ocupa. O sujeito é um ser ativo, age no mundo e sobre o mundo, nessa ação se produz e ao mesmo tempo é produzido no conjunto das relações sociais em que se insere. O sujeito se constitui na relação dialógica com os outros sujeitos. O sujeito é a construção de um indivíduo, ou grupo, como ator, mediante sua liberdade afirmada com sua experiência de vida assumida e reinterpretada. É o esforço de transformação de uma situação vivida em ação livre. Refere-se a si mesmo, às condições pessoais, interpessoais e sociais da elaboração e da defesa de sua liberdade contra todas as formas de dependência e opressão.

Paulo Freire lembra que a experiência de viver sob injustiças sociais e econômicas é uma matriz formadora de processos de humanização com base na consciência da desumanização a que se está submetido. Para ele, “tomar consciência” é um processo que só existe quando não apenas reconhecemos, mas experimentamos a dialeticidade entre objetividade e subjetividade, entre prática e teoria. A conscientização não pode parar na etapa do desvelamento da realidade: a sua autenticidade acontece quando a prática do desvelamento da realidade constitui uma unidade dinâmica e dialética com a prática da transformação da realidade, situando os sujeitos em processo de elaboração de suas cidadanias. Assim, a cidadania é essencialmente uma transformação continua da realidade na busca coletiva da humanização.

É importante anotar o fato de que historicamente o conceito de cidadania experimentou sucessiva ampliação de seus limites, resultado das lutas de emancipação de grupos que padecem uma dominação intolerável exercida por poderes hegemônicos. A cidadania civil que surge no século XVIII, por meio das conquistas burguesas das revoluções inglesa, estadunidense e francesa, configura a base do Estado de Direito para proteger a vida das pessoas, suas liberdades para agir, associar-se livremente e proteger seus direitos individuais e de propriedade. A cidadania política, consolidada no século seguinte, amplia os direitos humanos, possibilitando a participação na tomada das decisões, ao mesmo tempo em que institucionaliza os corpos representativos do Governo, os partidos políticos e a competência eleitoral, estabelecendo as formas básicas dos atuais Estados Democráticos. O século XX despontou afirmando a cidadania social, como o direito dos cidadãos e cidadãs de se beneficiarem da herança econômica, social e cultural da humanidade, dispondo de padrões mínimos de bem-estar com base para o exercício pleno dos direitos civis e políticos alcançados nos séculos anteriores.

Paradoxalmente, no século XXI, com o aprofundamento da globalização, estamos presenciando uma forte ameaça de retrocesso aos direitos conquistados pela luta histórica da humanidade. De fato, um tema antigo parece reaparecer entre nós: lá onde existem senão a necessidade e o desejo, o lucro se transforma na finalidade principal da vida, na medida em que se cria uma cultura alicerçada na afirmação de que o dinheiro pode comprar tudo, afinal o gênio do capitalismo consiste em alimentar a ganância dos indivíduos que por sua vez retroalimenta a sua reprodução sistêmica. O capitalismo é, de fato, a institucionalização da ganância. A tese básica dos defensores desse sistema é de que as civilizações fundadas na solidariedade foram poucas e mesmo assim não sobreviveram historicamente. Para eles, quem sobreviveu foram as civilizações baseadas na força do egoísmo dos seres humanos, que buscam a afirmação pessoal, nas quais só se admite a cooperação quando há perigo para todos. Mas, numa sociedade em que tudo está à venda, a vida fica mais muito mais difícil para quem dispõe de recursos modestos, como no caso brasileiro onde a desigualdade social e econômica tem fundamentos estruturais, como atesta Celso Furtado. Quanto mais o dinheiro pode comprar, mais importante é a sua afluência ou a sua falta. Portanto, a questão da distribuição da renda e da riqueza adquire uma importância ainda maior hoje do que no passado, uma vez que ter dinheiro passa a fazer toda a diferença do mundo à medida que todas as coisas boas podem ser compradas e vendidas.

Além da desigualdade e da injustiça, há a outra questão não menos importante: a tendência corrosiva dos mercados. Eles podem ser corrompidos pela prática de estabelecer preços para as coisas boas da vida. A corrupção consiste justamente em comprar e vender algo que não pode ser posto à venda. Está na hora de perguntarmos se queremos viver assim. É preciso repensar o papel dos mercados em nossa sociedade, por meio de um debate público sobre o que significa manter os mercados no seu devido lugar. E para isso é preciso identificar e analisar os limites morais do mercado. Precisamos perguntar: existem certas coisas que o dinheiro não pode comprar? Quais? Como garantir que não sejam corrompidas pelo poder do dinheiro?

No Primeiro de Maio paramos. Que essa parada possa produzir reflexões que nos ajudem a encontrar novos caminhos garantidores da liberdade e da justiça entre os sujeitos: caminhos mais sensatos, mais razoáveis, mais éticos e mais sustentáveis para todos.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Editora Dialética); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .