O poeta e a pandilha

Rubras cascatas jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas.

 

Em fins dos anos 70, os símbolos e as cores nacionais nos causavam pavor. Um simples acorde do hino nacional, era capaz de ocasionar dentro de cada um de nós um misto de ansiedade e medo, um tipo de indignação que nos irava e não raro podia nos levar às lágrimas.

 

Por trás de tudo isso havia cadáveres, filhos órfãos de pais vivos, estudantes assassinados ou mutilados, intelectuais e artistas presos e mandados para fora do país ou submetidos a sessões de tortura impensáveis nos porões pútridos da ditadura.

 

Nossos hinos, natural, eram outros, a exemplo da canção Caminhando (também conhecida por Para não dizer que não falei de flores), de Geraldo Vandré, que cantávamos a plenos pulmões, conscientes de que as metáforas desconcertantes da letra, brutalmente censurada, poderiam resultar numa cadeia ou em coisas muito piores.

 

Pouco depois, 78 ou 79, um compositor carioca até então pouco conhecido entre nós, ganhava o país com a força e a beleza de versos cujo conteúdo homenageava a volta dos brasileiros exilados e tornar-se-ia, da noite para o dia, uma espécie de verdadeiro hino nacional.

 

Nessa segunda-feira, ampliando impiedosamente um obituário já desmedido em que figuram  nomes como os de Moraes Moreira, Flávio Migliaccio e Rubens Fonseca, morreu, no Rio de Janeiro, aos 73 anos, Aldir Blanc Mendes, num hospital ironicamente localizado no bairro de Vila Isabel, cenário de tantas e tantas de suas mais belas letras, poemas e crônicas

Aldir Blanc deixa uma das obras mais expressivas do cancioneiro popular, nomeadamente as músicas que assina com o amigo-irmão João Bosco, pérolas como Bala com bala, Corsário, Mestre-sala dos mares, Dois pra lá, dois pra cá, bolero que entra para a história da MPB como uma verdadeira unanimidade em que se depara com um dos mais belos versos de seu repertório: “E a ponta de um torturante band-aid no calcanhar”.

 

Para não falar, claro, no hino da anistia O bêbado e a equilibrista a que nos referimos acima: “Caía a tarde feito um viaduto/E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos/A lua tal qual a dona de um bordel/Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel”.

 

Num momento em que precisamos tanto da poesia, despede-se de sua gente esse grande poeta e grande brasileiro.

 

IRONIA

Reconquistados o nosso entusiasmo e o apego aos símbolos e cores nacionais, desde a campanha pelas Diretas Já e a redemocratização do país, voltam eles a ser utilizados na contramão dos anseios dos verdadeiros devotos de nossas melhores tradições, usurpados por energúmenos que apregoam, sob a inspiração tresloucada do psicopata presidente, a volta do Regime de Exceção e do AI5.

 

Como disse a escritora Claudia Tajes, em texto memorável, que ao menos enquanto a ferida cicatrizar, que o primeiro uniforme [da seleção brasileira] troque o verde e amarelo que foi usurpado pelo azul, rosa, laranja, preto, branco. Sendo cor de burro quando foge, dá para vestir com orgulho novamente. Depois que tudo passar.

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica