Há um relativo consenso entre aqueles que atuam no Sistema Nacional de Recursos Hídricos que, durante crises de escassez de água, a adoção de instrumentos econômicos pode ajudar a obter uma solução negociada entre os usuários impactados. Entre esses mecanismos está o funcionamento de um mercado de águas temporário, entendido como a possibilidade da transação financeira pelo uso da água.
Pessoalmente, já acreditei mais no potencial de um instrumento como este. A experiência real nas crises tem demonstrado que não há interesse dos usuários em parar sua produção em troca de alguma indenização temporária por sua água – cuja negociação e fiscalização seriam extremamente complexas – visto que parar a produção coloca em risco também o seu mercado. Ou seja, parar pode significar também não ter mais para quem vender depois da crise. Além disto, verificou-se, na prática, que as empresas de saneamento, que poderiam ter maior interesse neste mercado excepcional, têm suas receitas reduzidas com crises hídricas e teriam um ônus adicional com este mercado, quando a legislação já assegura a prioridade ao consumo humano nas situações de escassez. Assim, qual razão justificaria uma empresa de saneamento pagar por algo que a legislação já garante a prioridade a ela? Os casos concretos deram a resposta: nenhuma!
Os mais otimistas com o mercado de água temporário podem argumentar que as negociações não aconteceram pela ausência de previsão legal. Assim, faz sentido criar as bases legais- que hoje realmente não existem- que possam permitir a realização de transações financeiras entre os usuários durante crises hídricas, através da negociação a água outorgada. Note-se – e esta é a questão principal – que se trata, neste caso, de um mercado excepcional e temporário, limitado à duração da crise hídrica que, quando encerrada, desfaz e extingue as transações realizadas nesse período. Seria, ainda, um mercado de águas restrito, porque estaria limitado à determinada bacia em situação de crise e não para todo o país. Lembro que a Constituição Federal de 1988 eliminou a propriedade privada da água.
Muito diferente, no entanto, é o projeto de lei 495/2017 de autoria do Senador Tasso Jereissati. Partindo das mesmas premissas – alternativas para alocação de água em situação de crises hídricas – o projeto na verdade restabelece a propriedade privada da água do Brasil, através da mercantilização das outorgas de uso de água entre os usuários de uma bacia, bastando para isso que o comitê de bacia estabeleça que há “alta incidência de conflito pelo uso de recurso hídricos”, (artigo 4º do PL465/17). Se tratamos, numa bacia hipotética, de “alta incidência de conflito” pelo uso da água, enfrentamos um problema de outra natureza, não de uma crise, por essência temporária. Mas vamos imaginar, pelo senso comum, que um rio tem mais demandas do que disponibilidade de água, portanto sujeito a “alta incidência de conflito”. Pelo projeto, um ou mais usuários podem vender a outorga que possuem para um comprador. Imagine agora que todos os usuários desse rio vendem suas outorgas para um único comprador, que a partir da compra das outorgas não se submete mais ao plano de bacias. Estaremos, com todas as suas consequências, diante de um rio privado!
Repleto de inconsistências, o projeto de lei atende plenamente àqueles que querem privatizar a água bruta no país. Preocupados com os riscos que as crises hídricas podem acarretar aos seus negócios, pretendem obter garantias especiais através da apropriação privada da água.
Creio, ainda, que projeto de lei é ilegal, pois permite a transação de bem público – água – cujo acesso é gratuito. Todas as outorgas de uso de água existentes no país foram obtidas gratuitamente. É certo que alguns Estados cobram por taxas, registros, laudos, ou seja, cobram por emolumentos para a expedição da outorga, mas nunca por um volume ou vazão de água. Com o projeto, pode-se vender o bem público obtido gratuitamente. Estabelece ainda que a água obtida através de uma transação acaba com o planejamento da bacia hidrográfica, que se efetiva através de um Plano de Bacia Hidrográfica, ao estabelecer que “As prioridades de uso … serão afastadas no caso de implantação de mercado de água na bacia ou sub-bacia hidrográfica, a fim de permitir a alocação eficiente dos recursos hídricos(…)” (§2º do artigo 5º). E Tasso Jereissati tenta, ainda, cooptar os comitês a agir nesta direção ao estabelecer que receberão 5% dos valores transacionados, transformando-os em mercadores de uma água que é pública.
Este é um projeto malicioso que deve ser rejeitado de pronto por sua inconstitucionalidade, ao implementar a propriedade privada de água no país, e combatido até por aqueles que acreditam nas potencialidades de um mercado de águas como um instrumento adicional e temporário para alocação de água em situações de crise hídricas. Há espaço democrático para um projeto específico com esta finalidade. O que não há é espaço para a ingenuidade diante da brutalidade do que propõe o senador Tasso Jereissati.
Vicente Andreu – Pai da Lara, é estatístico pela Unicamp, exerceu o cargo de Diretor-Presidente da Agência Nacional de Águas (ANA) de 2010 a janeiro de 2018. Exerceu, entre outros, os cargos de Diretor da CPFL, Presidente da SANASA-Campinas/SP, Secretário Municipal de Planejamento Urbano e Meio Ambiente de Campinas/SP, Diretor-Presidente da Usina Termoelétrica Nova Piratininga e Secretário Nacional de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente. Ex-diretor do Sindicato dos eletricitários de Campinas e palmeirense.
(Originalmente publicado no blog do autor)