O perfume da consciência  

“Logo logo aquele cheiro gostoso e revelador foi apelidado de “perfume da consciência”, e como ele era limitadamente autopropulsor, não precisava ser aumentado pelo tal alquimista que o inventara por acaso.”
 
          Certo dia, no Reino da Capitolânia, um aprendiz de alquimista, ao errar a fórmula de uma poção que já conhecia, e como resultado de sua imprudente alquimia, surgiu uma fragrância líquida inesperada e que cedo se transformava em gás docemente perfumado que se expandia pelo ar deixando o seu estado sólido anterior para assumir uma forma gasosa e crescer por um determinado espaço, mas que abrangia toda a região. 

Tomado por aquele odor inebriante, o próprio alquimista se surpreendeu com a transformação que estava a ocorrer sobre si mesmo ao aspirar tal odor transformador. É que ele mesmo passara a ter uma visão lúcida da realidade e, instantaneamente, passara a compreender o sentido e razão de todas as relações sociais até então estabelecidas.  
          Fatos até então imperceptíveis para ele, passavam agora a ser compreendidos com uma clareza meridiana e precisão matemática;  

  • a mentira era logo desmascarada por um nível de percepção impossível de ser percebida como o era anteriormente;  
  • a hipocrisia passava a ser percebida, e tudo passou a ser como se o desajeitado alquimista tivesse ingerido uma substância repelente à falsidade social capaz de dimensionar qualquer traço de fingimento nele implicitamente inserido.  

Naquela região reinava então uma séria recessão econômica, vez que a conjuntura internacional estava em grave depressão, e o problema regional estava agravado pelo fato do Reino ser governado por alguém que era: 

  • despreparado para o exercício do cargo que estava ocupando e que fora ungido a tal posição por conta da história de atentado meio Mandrake que lhe alçara à condição de vítima, como se ele não fosse um dos conservadores causadores do aumento da miséria (a quem servira desde sempre); 
  • que era tomado por um conservadorismo totalitário que compreendia que somente estariam aptos a governar o Reino os seres iluminados e educados numa disciplina na qual o soldado tem que obedecer a quem manda sem questionamentos, num engessamento que apenas reproduzia o ridículo da estrutura reinante; 
    -que era incapaz de absorver os ganhos da ciência em prol de uma epidemia virótica que ceifara a vida de 1 em cada 3.000 habitantes da região; 
  • e que acreditava ser possível resolver o problema da inflação que assolava a vida social quebrando o termômetro eletrônico instalado em uma urna aferidora de tal nivelamento de preços; 
  • que se sentia um novo salvador, posto que fora batizado nas águas sagradas de um Rio da região por um tal de pastor Etevaldo, cuja sacralidade fora questionada por corrupção e prisão;  
  • e tantas outras mazelas havidas ao longo de pouco mais de três anos que ficaria enfadonho enumerá-las todas.  

Pois, bem, foi nessa conjuntura social que o alquimista percebeu que a poção inebriante que houvera concebido acidentalmente, além de se propagar num crescendo capaz de abranger toda comunidade do Reino, tinha o condão de proporcionar justamente o contrário de sua imperícia: prover as pessoas de um nível de consciência jamais visto.  
Agora, e para todos da região, tudo ficara facilmente compreensível.  
Os que estavam acordados e aspiravam o ar inebriante eram tomados por tal transformação mental instantânea. Mesmo as pessoas que dormiam e a aspiravam durante o sono acordavam como se tivessem saído de um pesadelo e se sentindo aptas a resolver todos os problemas que afligiam a sociedade em que viviam.  

Logo logo aquele cheiro gostoso e revelador foi apelidado de “perfume da consciência”, e como ele era limitadamente autopropulsor, não precisava ser aumentado pelo tal alquimista que o inventara por acaso.  
          Os poderosos da região, também atingidos pelo ar por tal “perfume da consciência”, ficaram temerosos, vez que também se deram conta de que todos agora haviam compreendido que as suas confortáveis posições sociais, antes de serem compreendidas como se fossem próprias a meritórios e inteligentes empreendedores, eram agora compreendidas como se eles fossem apenas instrumentos de uma engrenagem e lógica que os beneficiava de modo socialmente segregacionista.  

O Reino da Capitolânia ficou em polvorosa. As pessoas se perguntavam: como foi possível que aceitássemos tanta injustiça social sem que não nos apercebêssemos da razão dela existir???  
          Então, tomados por uma revolta consciente, decidiram que daquele momento em diante ninguém iria trabalhar mediante salário, e que todas as atividades de produção seriam partilhadas sob um planejamento social de consumo capaz de satisfazer equanimemente a necessidade de cada um, independentemente de cada capacidade de produção.  
          Não houve revolta armada, posto que até os militares foram atingidos pelo “perfume da consciência” e baixaram as armas. Os trabalhadores simplesmente ficaram em casa por alguns dias até retomarem as suas atividades, agora sob autogerenciamento e sem o critério da produção de valor e dinheiro.  

O odiado governante, que se encontrava de viagem ao exterior, sabedor do efeito provocado pelo tal “perfume da consciência” tratou logo de voltar com urgência e usando uma máscara atrelada a um tubo de oxigênio para ficar imune aos efeitos já desconhecidos daquele tipo de ar, para analisar o que estava ocorrendo em seu Reino.  

Logo após, sentindo-se impotente e não aceitando os efeitos do “perfume da consciência”, exilara-se definitivamente em outro país governado por alguém de sua estirpe, tentando reunir forças para tentar retomar as rédeas do poder em seu Reino e tentar fazer tudo voltar ao estágio anterior. 

Até mesmo a força militar do Reino da Capitolânia, que também havia aspirado o “perfume da consciência”, agora em número reduzido, servia apenas para fiscalizar os pequenos delitos comunitários que ainda existiam, de naturezas pessoais, alguns passionais ou temperamentais, outros possessórios (não mais existiam crimes contra o patrimônio, vez que tudo era regido por posses sob critério de utilidade e necessidade pessoal). 

Daí em diante a sociedade capitolanesa, que passou a adotar o sugestivo nome de Libertânea, e que adotara um sistema de produção totalmente voltado para a satisfação das necessidades dos libertaneses, e estruturada num tipo de organização social de base consistente em células comunitárias deliberativas, era organizada a partir de três grandes segmentos (como na antiga estrutura de divisão de  poderes elitistas, mas agora transformadas em três segmentos de organização popular de base), quais fossem: 

-células administrativas – de controle da produção e abastecimento das unidades de produção (fazendas, indústrias, centros administrativos de armazenamento e distribuição, controle de estoques, emissão de aplicativos de limites de consumo, etc.) dos distritos e ligadas a uma estrutura central de coleta de informações da grande região, que devolvia os dados para as decisões de base; 

  • células legislativas – compostas pelos membros da comunidade que passaram a legislar de acordo com os interesses e problemas surgidos nos vários campos do direito (civil, possessório não patrimonial, que deixara de existir, vez que fora abolida a propriedade, criminal, administrativo, etc.); 
  • células judiciárias – encarregadas da análise de processos e sentenças judiciais nos vários campos do direito, e em instâncias de competências diferencias.  

Todos os serviços e produção funcionavam sem remuneração mensuradas por critério da antiga forma valor, e agora eram administradas pelo critério de necessidade comunitária a partir de um planejamento igualmente comunitário e deliberado a partir do aferimento da necessidade e capacidade de suprimento coletivo do consumo.  

Os novos critérios de produção e organização social surtiram efeitos tão satisfatórios e instigadores do espírito solidário que passaram a servir de exemplo para outras regiões que, mesmo não tendo sido atingidas pelo “perfume da consciência”, que infelizmente não podia atingir regiões mais distantes, passaram a se espelhar naquele exemplo de construção social altamente promissor.   

Entretanto, como os Reinos vizinhos fossem ainda governados pela antiga lógica insana, militarista, elitista subtrativa dos recursos coletivamente produzidos, competitivamente destrutiva e ecologicamente predatória, vez que o perfume da consciência não havia transposto as fronteiras da Libertânea, estabeleceu-se uma convenção entre aqueles países intelectualmente subdesenvolvidos. 
Tratava-se da tentativa de abafar aquele perigoso exemplo de emancipação popular vinda daquela estranha região ora denominada de Libertânea, na qual imperava a mais absoluta paz e prosperidade, mas que ameaçava a relação social conservadora dos pretensos agressores.   

Entretanto, paulatinamente, prevaleceu entre os povos dirigidos pelos governantes ainda teleguiados pela lógica da forma valor, um sentimento de adesão ao modelo que servia de exemplo construtivo e solidário adotado na Libertânea, e as tentativas de agressão a Libertânea floparam solenemente.

É que tal exemplo se alastrou mundo afora, derrubando, sem volta e progressivamente, o estágio inferior de relação social escravista até então vigente.

Os novos problemas que surgiram, em face das novas relações sociais adotadas, provocaram novos desafios, mas vamos ter que aguardar os encaminhamentos para um novo relato a partir das experiências vividas, informando, desde já, que eles não foram poucos.

Fonte da imagem: super.abril.com.br/comportamento/as-raizes-da-corrupcao

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;