O pensamento estratégico norte-americano, por Thierry Meyssan (Tradução de Ricardo Cavalcanti-Schiel)

Há 70 anos que a obsessão dos estrategistas norte-americanos não tem nada a ver com a defesa do seu povo, mas sim com a manutenção da superioridade militar dos Estados Unidos sobre o resto do mundo. Durante a década que vai da dissolução da União Soviética aos atentados de 11 de setembro de 2001, eles buscaram as mais diferentes maneiras de intimidar a tudo o que resistisse à dominação norte-americana.

Harlan K. Ullman desenvolveu a ideia de aterrorizar as populações, desfechando-lhes um golpe descomunal sobre suas cabeças (shock and awe: choque e pavor) [Ullman, Harlan K. & Wade, James P. 1996. Shock and Awe. Achieving Rapid Dominance. Washington D. C.: National Defense University Press.]. Seu paradigma era o uso da bomba atômica contra os japoneses, e, na prática, isso significou despejar uma chuva de mísseis de cruzeiro sobre Bagdá.

Os discípulos do filósofo Leo Strauss sonhavam com combater e ganhar várias guerras ao mesmo tempo (full-spectrum dominance: domínio em largo espectro). Vieram então as guerras do Afeganistão e do Iraque, comissionadas a um comando comum [Mahajan, Rahul. 2003. Full Spectrum Dominance. U.S. Power in Iraq and Beyond. Nova Iorque: Seven Stories Press.].

O almirante Arthur K. Cebrowski preconizava a reorganização das forças armadas de modo a tratar e compartilhar uma enormidade de dados de maneira simultânea. Assim, os sistemas automáticos poderiam um dia indicar instantaneamente as melhores táticas [Alberts, David S.; Garstka, John J. & Stein, Frederick P. Network Centric Warfare: Developing and Leveraging Information Superiority. Washington D. C.: Command and Control Research Program – Departamento de Defesa.]. Como veremos em seguida, as profundas reformas que ele iniciou não tardaram a produzir frutos venenosos.

O pensamento neoimperialista norte-americano

Essas ideias e obsessões começaram levando o presidente Bush e a Marinha à elaboração do mais vasto programa internacional de sequestro e tortura, que pode ter alcançado 80.000 vítimas, para mais adiante fazer com que o presidente Obama pusesse em marcha um programa de assassinatos, em especial por meio do uso de drones, mas também por meio do uso de comandos especiais, que passaram a operar em 80 países, com o suporte de um orçamento anual de 14 bilhões de dólares [Shaw, Ian G. R. 2016. Predator empire: drone warfare and full spectrum dominance. Minneapolis: University of Minnesota Press.].

A partir do 11 de setembro, o assistente do almirante Cebrowski, Thomas P. M. Barnet, proferiu numerosas conferências no Pentágono e nas escolas de comando e estado maior, para anunciar aquele que seria o novo mapa mundi, segundo o alto comando da Defesa [Barnett, Thomas P. M. 2004. The Pentagon’s New Map. War and Peace in the Twenty-First Century. Nova Iorque: Putnam Publishing Group.]. Essa projeção começou a tomar corpo por meio das reformas estruturais das forças armadas norte-americanas, nas quais se reconhece uma nova visão de mundo. Só que esse projeto parecia inicialmente tão delirante que os observadores estrangeiros apressadamente o consideraram apenas como mais um golpe de retórica, visando insuflar medo nos povos que os Estados Unidos pretendiam dominar.

Barnett afirmava que, para manter sua hegemonia mundial, os Estados Unidos teriam que jogar ao mar uma parte da carga, ou seja, dividir o mundo em dois, para ficar com o que interessa. De um lado ficariam os Estados “estáveis” (os membros do G-8 e seus aliados), e do outro, o resto do mundo, considerado tão apenas como um reservatório de recursos naturais. À diferença dos seus predecessores, Barnett já não considerava mais o acesso a esses recursos como vital para Washington, mas pretendia que eles só fossem acessíveis aos Estados “estáveis” pela mediação dos recursos e serviços militares dos Estados Unidos. Portanto, convém destruir sistematicamente todas as estruturas estatais no âmbito desse “reservatório de recursos”, de maneira que ninguém aí possa jamais se opor aos desígnios de Washington, nem tratar diretamente com os Estados “estáveis”.

Quando de seu Discurso sobre o Estado da União, proferido em janeiro de 1980, o presidente Carter enunciou sua doutrina: Washington considerava o abastecimento da sua economia pelo petróleo do Golfo como uma questão de segurança nacional. O Pentágono será então dotado do CentCom (United States Central Command) para controlar essa região. Hoje, no entanto, Washington obtém menos petróleo do Iraque e da Líbia do que o que se produzia antes das guerras contra esses países… e não está muito se importando com isso.

A ideia de destruir as estruturas estatais remete-se ao caos, um conceito emprestado de Leo Strauss, ao qual Barnett dá um novo sentido. Para aquele filósofo judeu, depois do fracasso da República de Weimar e, por consequência, o advento da Shoah (o Holocausto), o povo judeu não poderia mais confiar nas democracias. O único modo de se proteger de algum novo nazismo seria instaurar sua própria ditadura mundial ― em nome do Bem, “evidentemente”. Seria preciso então destruir alguns Estados recalcitrantes, mergulhá-los no caos, para poder reconstruí-los de acordo com novas normas [Drury, Shadia B. 1988. Political Ideas of Leo Strauss. Londres: Palgrave Macmillan. ― Norton, Anne. 2005. Leo Strauss and the Politics of American Empire. New Haven: Yale University Press. ― Gottfried, Paul Edward. 2011. Leo Strauss and the conservative movement in America: a critical appraisal. Cambridge: Cambridge University Press. ― Minowitz, Peter. 2009. Straussophobia: Defending Leo Strauss and Straussians Against Shadia Drury and Other Accusers. Lanham: Lexington Books.].

Isso é exatamente o que dizia Condoleezza Rice, durante os primeiros dias da guerra de 2006 contra o Líbano, quando ainda parecia que Israel podia sair vitorioso:

“Não reconheço o interesse da diplomacia, se é para retornar ao statu quo ante entre Israel e o Líbano. Creio que isso seria um erro. O que vemos aqui, de certa maneira, é um começo, são as contrações do nascimento de um novo Oriente Médio e, seja lá o que façamos, temos de estar certos de que avançamos em direção a esse novo Oriente Médio, e de que não retornaremos ao anterior”.

Para Barnett, no entanto, não bastaria mergulhar no caos apenas os povos recalcitrantes, mas todos aqueles que não alcançaram um certo nível de vida. E uma vez que sejam reduzidos ao caos, aí devem ser mantidos.

Em certa medida, a influência dos seguidores de Leo Strauss andou declinando no Pentágono após a morte de Andrew Marshall, idealizador do “giro para a Ásia” [Krepinevich, Andrew F. & Watts, Barry D. 2015. The Last Warrior: Andrew Marshall and the Shaping of Modern American Defense Strategy. Nova Iorque: Basic Books.].

Uma das grandes rupturas entre o pensamento de Barnett e o dos seus predecessores reside na ideia de que a guerra não deve ser conduzida contra Estados em particular, por razões políticas, mas contra regiões inteiras do mundo pelo fato de que elas não estão bem integradas no sistema econômico global. Evidentemente que se começará por esse ou aquele país, mas o mais importante é propiciar o efeito de contágio, até que tudo seja destruído, como se está vendo no Oriente Médio ampliado. Hoje, o estado de guerra se mantém, inclusive com blindados, tanto na Tunísia e na Líbia, quanto no Egito (Sinai), na Palestina, no Líbano (em Ain el-Helue e Ras Baalbeck), na Síria, no Iraque, na Arábia Saudita (na cidade de Qatif), no Bahrein, no Iêmen, na Turquia (em Diyarbakir) e no Afeganistão.

Por conta disso, a estratégia neoimperialista de Barnett precisa se apoiar necessariamente sobre elementos da retórica de Bernard Lewis e de Samuel Huntington sobre a “guerra de civilizações”. Como é impossível justificar a sumária indiferença pelo destino dos povos daquele “reservatório de recursos naturais”, pode-se ainda persuadir as pessoas de que nossas civilizações são incompatíveis.

Mapa inicialmente apresentado por Thomas P. M. Barnett em uma conferência realizada no Pentágono em 2003. Os países dentro da área rosa são considerados como “não-integrados” ao “centro operativo” do mundo globalizado. Esta cópia foi extraída de um Powerpoint do Estado Maior Conjunto dos Estados Unidos.

A aplicação do neoimperialismo norte-americano

É exatamente essa política da qual vínhamos tratando que foi posta em prática a partir do 11 de setembro. Nenhuma das guerras que se iniciaram desde então terminaram. Após 16 anos, as condições de vida dos afegãos são, a cada dia, mais terríveis e perigosas. A reconstrução do seu Estado, anunciado sob os termos de um planejamento similar àquele do modelo da Alemanha e do Japão após a Segunda Guerra, jamais chegou a acontecer. A presença de tropas da OTAN em nada melhorou a vida dos afegãos. Pelo contrário, ela se deteriorou ainda mais. É forçoso constatar que essa presença é, hoje, antes de mais nada, a causa do problema. A despeito dos discursos tranquilizadores sobre a ajuda internacional, a presença das tropas estrangeiras lá apenas aprofunda e mantém o caos.

Em momento algum, desde que as tropas da OTAN desembarcam, os motivos oficiais para a guerra se revelam verdadeiros, nem no caso do Afeganistão (a responsabilidade do Talibã nos atentados de 11 de setembro), nem no caso do Iraque (o apoio de Sadam Hussein aos terroristas do 11 de setembro e a fabricação de armas de destruição massiva para atacar os Estados Unidos), nem no caso da Líbia (o bombardeio do exército sobre o próprio povo), nem no caso da Síria (a ditadura do presidente Assad e da seita alauita). E em nenhum dos casos, jamais a derrubada de algum governo pôs fim às guerras que aí se iniciaram.

As “primaveras árabes”, ainda que sejam fruto de uma ideia do MI6, o serviço de inteligência britânico (Military Intelligence, Section 6), que se vincula diretamente ao modelo da “revolta árabe de 1916” e das façanhas de Lawrence da Arábia, acabaram se inscrevendo no plano geral da estratégia norte-americana. A Tunísia tornou-se ingovernável. No Egito, o exército retomou o controle da situação e o país tenta hoje, com bastante esforço, respirar. A Líbia tornou-se um campo de batalha; não após o Conselho de Segurança da ONU adotar uma resolução clamando a proteção da população, mas a partir do assassinato de Muamar Kadhafi e a vitória da OTAN.

A Síria, tão apenas, tornou-se um caso excepcional, uma vez que o Estado não chegou a passar às mãos da Irmandade Muçulmana, para que eles pudessem instalar o caos no país. No entanto, numerosos grupos jihadistas egressos da Irmandade controlaram ― e ainda controlam ― partes do território onde, aí sim, instalou-se o caos. Nem o califado do Estado Islâmico (Daesh), nem Idlib sob o controle da Al-Qaida chegam a conformar Estados onde o Islã possa florescer, mas apenas zonas de terror, sem escolas ou hospitais.

É provável que, graças a seu povo, a seu exército e a seus aliados russos, libaneses e iranianos, a Síria consiga escapar do destino traçado para ela em Washington. No entanto, o Oriente Médio ampliado continuará a arder até que seus povos compreendam os planos dos seus inimigos.

O mesmo processo de destruição lança seus primeiros passos no noroeste da América do Sul. A mídia ocidental trata com desdém as conturbações na Venezuela, mas uma vez que a guerra comece, ela não se limitará a esse país. Ela tenderá a se espalhar pela região, ainda que as condições econômicas e políticas de cada Estado que a compõe sejam bastante diferentes.

Os limites do neoimperialismo norte-americano

Os estrategistas norte-americanos adoram comparar o poder dos Estados Unidos com o do Império Romano. No entanto, os romanos aportavam segurança e opulência aos povos que conquistavam e integravam; construíam monumentos e racionalizavam suas instituições. Ao contrário, o neoimperialismo norte-americano não tem nada a aportar, nem aos Estados “estáveis” nem ao que ele considera mero “reservatório de recursos naturais”. Ele planeja tão apenas extorquir os primeiros e destruir os laços sociais que sedimentam os últimos. Ele sequer deseja exterminar esses últimos, mas apenas fazê-los sofrer de tal modo que o caos em que vivam convença os Estados “estáveis” a não ir buscar neles recursos naturais senão sob a proteção das forças militares dos Estados Unidos.

Até aqui o projeto imperialista considerava que “não se pode fazer omeletes sem quebrar os ovos”. Ele admitia que teria que cometer massacres “colaterais” para estender sua dominação. Daqui por diante, ele parece ter começado a planejar massacres generalizados para impor definitivamente sua autoridade.

O neoimperialismo norte-americano supõe que os demais Estados do G-8 e seus aliados aceitem que os Estados Unidos “protejam” os interesses daqueles mundo afora, por meio das suas forças militares. Se isso parece não ser um problema para o caso da União Europeia, já submissa depois de tantos anos, pode, no entanto, que venha a ser objeto de discussão dura com o Reino Unido, e, seguramente, será impossível com a Rússia e a China.

Lembrando sua “relação especial” com Washington, Londres já exigiu ser tratada como sócia no projeto norte-americano de governar o mundo. Esse foi o sentido da viagem de Theresa May aos Estados Unidos em janeiro de 2017, no que acabou ficando sem resposta.

De outra parte, é impensável que as forças militares norte-americanas assegurem a segurança das “rotas da seda” tal como as rotas comerciais estão estabelecidas hoje, em parceria com seus homólogos britânicos, por meio de vias marítimas e aéreas. Do mesmo modo, é também inimaginável fazer a Rússia se curvar e cair de joelhos, ainda mais depois de manobrar para retirá-la do G-8 por conta de seu envolvimento na Síria e na Crimeia.

(

no Réseau Voltaire

Sugestões do tradutor:

Para saber mais sobre a “estratégia do caos” e sua aplicação:

A estratégia do caos;

Caos: Prática e Aplicações;

A última potência hegemônica: aqueles a quem os deuses destruirão

Para quem lê em francês, o melhor “briefing” sobre os fundamentos dessa estratégia:

Leo Strauss: l’idéologie fasciste des faucons.

Sobre os termos gerais de uma “nova guerra fria”:

Nova guerra fria: faz sentido?

Convidado

Artigos enviados por autores convidados ao Segunda Opinião.

Mais do autor

Convidado

Artigos enviados por autores convidados ao Segunda Opinião.