O papel do Estado na economia: crítica à escola austríaca, por Juliano Giassi Goularti

Partindo do nível de abstração teórico e dentro do princípio da liberdade de expressão e da democracia, pretendemos neste artigo nos contrapor à escola austríaca. Dado a limitação de espaço, refutaremos um ponto da escola: o papel do Estado e da autoridade monetária (Banco Central).

No entendimento da escola, a intervenção do Estado prejudica o conjunto das relações econômicas, por isso defende o laissez-faire. No seu conjunto, as intervenções são vistas como uma prática equivocada, perniciosa e trazem danos e consequências desastrosas. O Estado mínimo é condição essencial para florescer o “espírito capitalista”, prevalecendo a radicalização da crença smithiana da mão invisível, na capacidade autorreguladora do mercado e na crença da lei de Say. Logo, “quem pede maior intervenção estatal está, em última análise, pedindo mais compulsão e menos liberdade”.

Partindo desta defesa, a postura da escola quanto a não intervenção do Estado é muito mais aguerrida do que os próprios clássicos. Em última instância, há por detrás deste espírito a visão de que a espada do Leviatã é uma arma opressora que apunhala as liberdades individuais. Estaria a escola defendendo o estado de natureza hobbesiano, um estado de guerra permanente de todos contra todos?

Neste debate, Ludwig von Mises dá uma atenção especial à atividade bancária. A intervenção do governo no mercado de crédito, ou seja, na sua intensificação/expansão “está fadada ao fracasso. Mais cedo ou mais tarde resultará numa catástrofe”. Ao lançar crédito no mercado, faz aumentar a quantidade de dinheiro em circulação e isso gera inflação. O mesmo se dá para os gastos “irresponsáveis” do governo, que são uma espécie de fermento para dívidas públicas e pressionam a inflação.

Ressurgindo recentemente por meio do neoliberalismo, a escola vê malefícios da atuação da autoridade monetária. Referindo-se ao caso brasileiro, citando, com exemplo a mudança de moeda, Ubiratan Iorio entende que “literalmente, desde que foi criado, o Banco Central do Brasil nada mais fez do que destruir a nossa moeda!”. Isto quer dizer que a economia funcionaria muito melhor sem um Banco Central.

Friedrich Hayek defende uma postura ultra-radical: moedas privadas e concorrentes entre si como forma de dar maior estabilidade ao sistema. Em outros termos, não caberia ao Estado estabelecer nenhum tipo de monopólio no mercado monetário. No contexto da moeda privada, a tendência seria o caos do tipo “salve-se quem puder”. De uma forma geral, não resolveria o problema da incerteza, não traria estabilidade dos preços e aprofundaria com a velocidade de uma fecha a concentração de riqueza e ampliação das desigualdades sociais.

Desta maneira, é um mito de que a existência de concorrência entre moedas seria a saída para o problema da inflação como também para a garantia de uma maior estabilidade do regime do capital. Repassar ao mercado a função de guardião da moeda e privá-la é renunciar toda e qualquer autonomia de política monetária. Seria como estar preso a uma bola de ferro aferrolhada aos pés.

Quanto ao papel do Estado, “o capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando ele é o Estado” (Braudel). A “sobrevivência do capitalismo tornou-se possível apenas em razão do papel jogado pelo Estado” (Przeworsky). Amiúde, o capitalismo só tornou-se o que é porque a centelha proveio do Estado.

Por excelência, é preciso entender que o Estado teve e tem papel essencial na reprodução contínua do capitalismo, isto é, o Estado é ao mesmo tempo a ossatura material e a espinha dorsal do capitalismo. O Estado não somente garante a defesa dos interesses dos capitalistas, mas também sua reprodução em escala ampliada. Por isso, cada vez mais, o capital necessita do Estado.

Não existe o auto-salvamento do capitalismo sem Estado, existe sim o suicídio. Quem salva o capitalismo de sua própria anarquia é o Estado. Se fosse trilhar por suas próprias pernas, o capitalismo ainda estaria nocauteado em decorrência de suas sucessivas crises.

Essa narrativa vulgar papagaiada da necessidade da existência do Estado mínimo significa oposição às políticas de direitos e garantias sociais. Na verdade, isto representa uma defesa do tipo de estratégia militar para rendição do Estado em fazer política de desenvolvimento social. O capitalismo darwinista não faz política social, quem faz política social é o Estado. Nesse tocante, se hoje temos direitos trabalhistas, universidades e previdência públicas, SUS dentre outros direitos sociais e serviços públicos é porque teve a intervenção do Estado.

Do contrário ao exposto, é óbvio que, se fôssemos submeter a economia política ao modelo de Estado mínimo, não haveria tais direitos sociais e os serviços seriam privados, o que privaria a ampla e esmagadora maioria da sociedade. Neste sentido categórico, o Estado mínimo nos leva a parafrasear Tucídides: “os fortes fazem o que podem, e os fracos sofrem o que devem”. Poderíamos também comparar o Estado mínimo com a pintura a óleo de Francisco de Goya “Saturno devora seu próprio filho”.

Quanto à atuação da autoridade monetária, esta foi criada para sanear as contradições internas do capitalismo. Não foi criada por vontade divina ou satânica, mas sim para garantir a estabilidade do próprio sistema capitalista, isto é, impedir sua anarquia. Não por menos, quem salvou o sistema financeiro do colapso em 2007-8 foi o socorro público pela via da socialização dos prejuízos. Caso destitua a autoridade monetária, o sistema entraria em chilique na primeira esquina.

O sistema de crédito é que permite a realização de investimentos, novas combinações, demanda efetiva, reprodução ampliada. O crédito é a força motriz da produção capitalista, que permite acelerar a dinâmica da circulação do capital, como também faz com que a articulação das relações capitalistas se propague no mercado.

O progresso técnico e o processo de inovação tecnológica seriam impossíveis de existir sem o sistema de crédito. Se fôssemos esperar pela formação da poupança para o desdobramento do modo de produção capitalista, certamente esta ainda estaria em seu estágio primitivo. Portanto, associar a expansão o crédito à inflação é uma blasfêmia.

Já quanto ao gasto governamental, assim como o crédito, é emprego, renda e, sobretudo, política social. No caso brasileiro, a dívida pública está correlacionada com as altas taxas de juros, e não com os gastos governamentais. Na prática, o gasto público é que permite a máquina capitalista continuar seu fluxo circular. Inibir o gasto público pelo mecanismo astuto de ajuste fiscal significa evocar a desgraça da ampla maioria da população, colocando-a para ser triturada pelo “moinho satânico”.

Nesta lógica, é preciso entender o sistema de crédito e de gasto governamental como fenômeno fundamental do desenvolvimento econômico e social, e não como elemento draconiano da inflação. Por essas e outras razões, a fé emocional na austeridade fiscal é uma crença vulgar na estabilidade macroeconômica, que corrói o tecido social dos “filhos deste solo”.

Para encerrar, se o pecado original do historiador é o anacronismo, o pecado original do economista liberal/ultraliberal é seu constante divórcio com a realidade – é o caso da escola austríaca.

Juliano Giassi Goularti

É doutorando do Instituto de Economia da Unicamp (texto originalmente publicado em www.brasildebate.com.br)

Convidado

Artigos enviados por autores convidados ao Segunda Opinião.