O MITO DA BALA PERDIDA – Ackson Dantas

MITO

Antigamente os gregos utilizavam o mito para explicar fenômenos naturais e fatos da realidade. Compreender a origem e as ações do homem em sociedade. Mas, para Mircea Eliade, filósofo, uma das funções do mito é fixar modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas. Para além de explicar é preciso acomodar e tranquilizar o homem no mundo. Atualmente, mito se apresenta como uma narrativa que propõe a manutenção da crença em determinadas coisas, justificando-as por um senso comum distante de uma explicação científica.

BALA PERDIDA

Bala Perdida é um termo cunhado no Brasil para designar o projétil que, ao sair de uma arma de fogo,  não atinge seu objetivo inicial, por conseguinte acabará encontrando outro objetivo secundário para tocar. Geralmente o objetivo secundário deságua em um corpo. Nos acostumamos com tal termo nos noticiários de televisão, rádio, jornal (impresso e online) e nestes temos a impressão de que tal bala só vira notícia, só a anunciam perdida, quando exatamente esbarra no corpo de um ser humano qualquer. Daí criou-se o mito da bala perdida para justificar o corriqueiro acontecimento e torná-lo tão banal quanto tomar café.

ALEGORIA

Uma bala se perdeu e atingiu o menino (Caderno Notícias, p. 3). Assim anunciava a nota de rodapé de um grande jornal da cidade. A pouca importância para o fato me chamou atenção mais que a capa, salvo o engano, falava alguma coisa sobre economia ou será que era sobre   novela?

Curioso, enfiei os dedos no jornal até chegar à página. Era uma notícia de pouco mais que meia coluna, uma foto quase três por quatro e de baixa resolução. Pouco se entendia a imagem, mas foi possível aferir uma ambulância, um corpo e um lençol a lhe encobrir. O texto mal escrito, creio que pela pressa de envio à redação, dizia em linhas gerais sobre um jovem vítima de uma bala perdida na praça. Apresentava breve argumento de amigos da vítima e de companheiros de trabalho do atirador, ao final os dizeres “medidas estão sendo tomadas e investigação será instalada”.

Li novamente e procurei me ater a informações específicas, como qual a idade do menino, em que bairro ocorreu, quem disparou a arma, hora do ocorrido. No meio da leitura a tal “bala perdida” ficou encasquetada na minha cabeça. Por que sempre este termo aparece nestas situações? Essas balas são mesmo perdidas?

Toda bala que sai de um revólver tem o mesmo objetivo, um corpo a encontrar e perfurar, a destroçar, toda bala ela quer ferir, quer matar. Nenhuma delas pode ser perdida, pois sua intenção é agressão,  é violência. Sempre há um destino, um corpo que atravessa no espaço, sempre encontram corpos no meio do caminho. E que corpos são esses?

No caso desta notícia era um corpo jovem, negro, passante de uma praça num bairro pobre da cidade. Ao fazer uma rápida pesquisa, descobri que cotidianamente os jornais escrevem matérias sobre o mesmo tipo de fato, ocorrido com o mesmo tipo de público e em lugares bastante semelhantes. Em todos eles o termo “bala perdida” aparece estampado. Antes,  as notícias tomavam a capa principal do jornal, mas isso foi diminuindo e hoje não passa de meia coluna. A notícia se repetiu tanto que perdeu o valor.  Pobres corpos, deixaram de ter importância em meio à banalização do ato.

Indignado, abro o e-mail e escrevo para o jornal: bala perdida é um mito! É o caralho! Alcunharam este termo para algo contínuo e seletivo. Serve para justificar atitudes de uma política invisível de limpeza social. É argumento para absolver uma polícia que sempre agiu deliberadamente violenta contra uma parcela da sociedade. Por que nunca lemos em seu jornal “bala perdida” em área nobre da cidade? Policial atinge empresário por confundir vara de pescar com espingarda ou celular com revólver? Por que pedestal pode ser confundido com metralhadora? Por que carro de passeio pode ser metralhado à luz do dia? Por que mochilas e crianças são tão perigosas ao ponto de serem abatidas sumariamente?

Respiro, reflito, acalmo. Enquanto tomo calmante, cerveja gelada tem propriedades que relaxam as pessoas, fico imaginando a dor dos parentes. Como será esperar por alguém que não voltará mais? Angustiante é perceber a impotência diante de tudo e que mesmo gritando até perder a voz, ninguém escutará, nada acontecerá.

Voltando a escrever… Isso demonstra não a incapacidade do estado em garantir segurança para as pessoas, mas o acobertamento de uma tática silenciosa que a cada dia ganha mais terreno e menos espaço de discussão. Uma política sorrateira sobrevoa as cidades e paira sobre a cabeça de pessoas inocentes.

Essa política é independente de partido, acontece em todas as cidades do país e se torna ainda mais visível nas capitais. Não importa se o governador tem a bandeira amarela ou a marrom, se o partido é destro ou canhoto, se o prefeito foi formado na melhor universidade ou apenas concluiu o ensino médio. Todos comungam da mesma ideia ou, no mínimo, todos fazem vistas grossas para o genocídio diário dos inocentes.

Aliás, alguns poderosos, cansados do silêncio e apoiados por uma parte da sociedade que desesperadamente clama por maior segurança social, arremata uma política deliberada de salve-se quem puder! A orientação é: metralha! Depois que o corpo estiver imóvel,  vai lá e descobre de quem se trata. Se for bandido me avisa para poder fazer festa nas redes sociais, se for inocente,  tenta camuflar alguma coisa, põe uma arma na mão, drogas numa mochila, acusa e pronto! Afinal é para isso que servem o direto e a fé pública.

Todos que moram num morro, numa favela,  são potencialmente criminosos, assim pensam as forças de segurança, da polícia ao exército,  a ordem é a mesma. Outro dia ouvi de um economista: a melhor política de redistribuição de renda é a diminuição da população, assim as contas do estado se ajustam, haverá emprego para todos, a saúde pública terá até leitos sobrando e o trânsito se tornará uma maravilha.

Curioso é perceber que muitos apoiam este tipo de ideia, inclusive os que rotineiramente estão na mira das armas que redistribuirão a renda do país. Raul Seixas, na sua maluquice legal,  certa vez cantou “você mata uma, mas vem outra em meu lugar”. A letra se referia a moscas, no entanto, nas cidades acontece a mesma coisa,  e mesmo matando a cada dia mais jovens pobres, outros tantos teimam em nascer e existir, em crescer para serem jogadores de futebol, poetas, cantores, escritores, professores, traficantes, pedreiros, pedintes, diaristas e desocupados.

O mito da bala perdida é o estado falido tentando esconder suas fragilidades, fazer limpeza social para que seus políticos, empresários e banqueiros possam andar em seus carros com vidros abertos nas principais ruas das capitais do país. O tiro acontece antes mesmo do gatilho ser apertado, quando a polícia age violentamente contra saraus de jovens em praças públicas. Quando um corpo, na maioria das vezes negro, leva um tapa na cabeça e é chamado de vagabundo simplesmente por circular em seu bairro ao anoitecer. A bala começa a ser disparada quando jovens são proibidos de entrarem em shoppings ou quando circulam nestes e estão sempre acompanhados por olhares desconfiados de seguranças, prontos para uma abordagem e evacuação do local a qualquer movimento ou atitude suspeita.

O mito escamoteia o momento exato da partida, do disparo e seu destino, forja a ilusão de acidente ou algo fortuito.  Não é! O alvo foi cuidadosamente preparado por alguns anos, a tal bala vem teleguiada em busca de frágeis corpos desalentados pela sociedade. Não sei quantas outras notícias em jornal lerei esta semana sobre este assunto, desejo não as encontrar, mas temo decepcionar meu desejo.

Ackson Dantas

Ackson Dantas é pedagogo e especialista em gestão escolar, neuroeducação e ensino de artes. Professor de pós-graduação em Neuropsicopedagogia e coordenador pedagógico. Arte-educador, ator, diretor teatral e poeta estreando sua primeira obra em 2019 intitulada “O Costurador de Mundos”.

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1 comentário

  1. Elisio Celestino

    Excelente Reflexão! A violência estrutural causada pelo Estado e o sentimento exacerbado de medo do crime buscam fundamentar, por sua vez, uma demanda de parte da população por uma “ordem” através do aumento da repressão e intensificação das práticas punitivas, mesmo que isso signifique perdas na garantia dos direitos humanos. Infelizmente. E isto aumenta a arbitrariedade das ações da polícia (do Estado). Sendo até banalizados por muitos.
    Dentro deste cenário em que a violência urbana mobiliza as pessoas e orienta as políticas públicas, uma população específica parece ser o grande foco das atenções: (crianças, adolescentes e jovens pobres, negros, do sexo masculino) constitui um “tipo ideal” de “criminosos’ no imaginário da sociedade contemporânea. E em especial para os operadores do “Direito” e para os agentes da segurança pública. Nesse processo social de criminalização, observa-se a construção de uma base “legítima” para o aumento de repressão e violência com relação a esta população. Os mitos de hoje em dia são facilmente desmitificáveis, ou seja desmascaráveis! INDIGNEMO-NOS!!!!