O Fuzilado

Mate-a então. Não é como se houvesse outra forma de te livrar desses tormentos.

À parte isso terá que ter certeza, pois as consequências serão seguramente muito mais dolorosas que a tua pena de agora. Não me refiro às consequências legais, claro, dado que seu ato estará aquém dos juízos jurídicos, mas ocupa uma dimensão intrínseca e indissoluta da nossa própria existência: a mente! Por isso, meu querido amigo, com a má consciência, sim, é que você deve se preocupar.

  • Assassino – Sussurrará a todo instante o sangue lavado das suas mãos, privando-te do sossego que a morte dela te prometera. 

À vista disso, é imprescindível cultivar certezas! Nunca verdades. A Verdade possui um gênio mutável, que cresce junto com o ser humano. Por isso, o discernimento de hoje é notadamente diferente do de ontem, essa é a natureza daqueles que evoluem. Se pecamos, por arrogância, batem à nossa porta os credores lesados pelo ato; se por muita sorte eles deixam de vir, estripa-nos o ventre a inconveniente culpa, que tá lá e fica lá, doendo de corpo e de alma. Vou te contar uma história que mudou um pouco o meu modo de perceber as pessoas, imagino que de alguma forma pode ajudá-lo em seu impasse, ocorreu me há poucos meses:

Acompanhei pela televisão o julgamento de um torturador profissional. Ele estava sendo punido por uma série de crimes contra a humanidade cometidos durante determinado período antidemocrático de seu país. As atrocidades, reiteradas pelos jornalistas e ilustradas pelos fotógrafos, saltavam aos olhos incrédulos da população.  Tanto que, para melhor assimilar tamanha perversidade, atribuímos tais atos monstruosos a manifestação do próprio Mal. As vinhetas, que atualizavam os expectadores sobre o caso, doíam-me no fundo da alma, causando enfadonho desassossego e persistente náusea, mas, ainda assim, aguardei obstinada o início da sessão que, com certo atraso dramático, finalmente revelou a face abominável do réu. 

Diferente do que antecipava a minha cinematográfica imaginação, seu semblante não demonstrava ser receptáculo de nada nefasto. Era fisicamente muito mais funesto e intimidador nas fotografias que viralizaram do que constatávamos em seu aspecto hoje. Intrigada, e confesso que um tanto decepcionada, acompanhei com comedido sadismo os particulares trejeitos do tal torturador. No entanto, aquela repugnância por ele, previamente estabelecida antes mesmo de sua entrada, confrontava o meu habitual senso de cordialidade com senhorzinhos em simpática idade avançada. Onde fora parar o mal?.. Eu meticulosamente sondava seus rastros. 

Houve um tempo em que eu ia com meus pais para igreja. Lá, todos os meus dilemas eram resolvidos, o julgamento excessivamente dogmático formulado pelo padre me servia como balança do certo e do errado com argumento chancelado pelo próprio filho de Deus! Num dá pra ser mais tranquilo que isso, eu obviamente seguia as coordenadas de uma boa cristã, inclusive, considero hoje um caminho muito mais cômodo, mas, apesar disso, fechamos-nos na cova da última Feriada Narcísica da humanidade: matamos Deus. 

O fato é que ideia de um deus, velhinho barbudo, intervindo e julgando o bem e o mal aqui na Terra, para no fim de nossas vidas decidir quem entra e quem sai no clubinho do céu não sustenta o próprio argumento. As correntes transcendentais da cooperação cósmica, por outro lado, têm conseguido resgatar nossos jovens do adoecimento psíquico se abstendo, ainda, dos nocivos dogmatismos religiosos. Ou seja, estamos largados à própria sorte na hora de ponderar nossos próprios atos. Veja só, fazer o que tem que ser feito é cansativo, os deslizes veem e vão, cada mudança de perspectiva na narrativa já desconstrói os alicerces da nossa realidade. Daí a necessidade de suplantar a preguiça e conduzir novos significados, ou temos uma atitude moral completamente displicente, – reprodutora e, por vezes, infratora da norma social – ou nos encontramos numa hora dessas demasiadamente exaustos, construindo das ruínas um alicerce ainda mais forte que o anterior. Ser coerente talvez seja o ‘x’ da nossa Equação. 

Em um Estado de Emergência, o oficial teve suas ações legitimadas pela ética militar estabelecida em favor do ‘bem-estar de seu governo’, mas até que ponto a moral social deve estar acima do discernimento moral individual, – se desinteressado, se empático, se forte? O ex-militar, condecorado com medalhas de horária, fez sua carreira seguindo a risca os preceitos éticos determinados por sua pátria. Enredo familiar em muitas realidades. Pois bem, desse modo, a verdade que é posta, difundida e comungada hoje pela comunidade, deve ser para sempre a absoluta? Sempre será? Em situações como a do réu, que envolve a infração de direitos básicos do indivíduo à vida, o que prevalece? A nossa estrutura social civilizada já admitiu a escravidão, a invasão e a exploração de outras nações. Hoje, alimentos são estocados onde ainda existe Fome. 

Será que martelo inquisidor da verdade coletiva conseguirá sustentar por muito mais tempo suas polaridades maniqueístas mesmo depois do sumiço do tempo? 

 

Raquel Catunda Pereira

Raquel Catunda Pereira é romancista, dramaturga e contista cearense premiada com as obras "Historia entre Mundos", Prêmio Rachel de Queiroz; "Espetáculo de Você", Concurso Jovens Dramaturgos" e "A Equilibrista", Coletânea de Contos Ideal Clube. A escritora é também Mestre em Literatura Comparada pela UFC e exerce atividades como educadora em escolas de Fortaleza.