Não tenho uma ideia própria sobre transcendência. Como na maioria das questões dessa natureza, avanço nas ideias alheias, já ditas e escritas, para compensar certa falta de imaginação a respeito. Algum bloqueio, certamente. Não sou exatamente criativo na área.
Uso as ideias alheias * de maneira respeitosa. Alinho o pensamento dos outros, confronto-os com fatos, com números, com trajetórias e tendências, vejo semelhanças e contradições e, com esse caldo e com minha ingênua percepção, faço algum juízo próprio, quase sempre uma pura intuição. Depois de ler, reler e me afastar e esperar, alguma coisa nova, minimamente original, aparece, vinda de algum encaminhamento mental, cerebral. Um processo bem infantil, eventualmente eficaz.
Vou tentar fazer isso aqui e e agora: se você aceita que a demanda por transcendência nasce da fragilidade humana, a começar da incapacidade de lidar com a finitude, então siga na leitura.
Ponto de partida. Em algum momento, por algum processo eletroquímico, o animal deu um salto radical e virou animal racional. E foi evoluindo lentamente, milhões de anos se passando. O tempo é a variável decisiva. Química e eletricidade, os processos. Circunstâncias e acasos interferem, e para alguns aí está o dedo de Deus.
O homem se diferencia do animal porque pensa, porque tem consciência do que sente, quer saber quem é, sabe que pode mudar, e mudar de novo, e avançar e recuar, e (re)escrever sua própria história. E ampliar os poderes e as possibilidades de seu corpo. Enfim, voar, com toda a ampla significação de voar.
Para o que vou dizer aqui tanto faz que o homem tenha criado Deus, ou que Deus tenha criado o homem. Mas é óbvio que um precisa mais do outro do que o outro do um. E o homem quer ser deus, só que não sabe, ou não assume.
Aquele criativo historiador (não será isso uma contradição em termos?) disse que o homem está a caminho de poder ser feliz, ser imortal e ser deus. Ele deve considerar que a tristeza, a dor e o sofrimento são desequilíbrios eletroquímicos, e um competente tratamento medicamentoso pode sanar as questões. Também pode o homem ser imortal porque a medicina fará trocas de peças e manterá tudo jovem e funcional, através de transplantes e outras técnicas. Quem sabe, diz ele, podemos criar um novo empreendimento capitalista: as fazendas de órgãos — deve dar lucro. E também não está longe do homem ser deus (você já vê por aí organizações quase oniscientes, onipresentes e onipotentes, né?), considerando a tendência e a trajetória dos avanços tecnológicos. Tecnologia para tudo, basta dar asas à imaginação, e voar.
E aquele físico, que fotografa com a língua de fora, faz tempo já explicou sua teoria. Viajando na velocidade da luz, o homem na verdade viaja no tempo, para o passado, para o futuro. Vamos organizar e calibrar também este empreendimento (digamos) turístico de alto potencial lucrativo. Logo, logo estaremos fazendo viagens de ajustes individuais, familiares e de nações, ou seja, todas as histórias podem ser reescritas (eu sempre me imaginei voltando ao passado e fazendo sucesso e esnobando filósofos gregos e escritores russos e franceses).
E o princípio da incerteza é a cereja do bolo. Ela diz que no mundo subatômico é impossível definir o trajeto de uma partícula (ou onda) de luz entre os pontos A e B. E, pasmem, o observador, com o seu olhar, interfere na trajetória da partícula. É o mundo quântico. É o mundo quântico que compõe o mundo real e concreto. Se eu não disser, vocês não vão perceber o que isso significa especificamente: significa que não há mais limite entre o espiritual e o concreto. Ciência e espiritualidade quebram cadeados, rompem fronteiras, dão-se as mãos e se abraçam. O céu é o limite. E, cá pra nós, provavelmente não há céu. Nem inferno.
Aquele escritor simplificou tudo imaginando um depois do fim individual inevitável, a morte: cada um vai ter que conviver consigo próprio pela eternidade. Eis um justo castigo. Ou prêmio?!
Só que ele, o escritor e sua ideia de de justiça eterna podem chegar tarde, porque há uma chance de que realmente nos tornemos imortais.
Quanto à transcendência, sei não. Penso que mesmo eliminando fragilidades e a finitude, ainda haverá demanda. Vamos talvez inventar novos deuses, novos céus, novos infernos.
Sempre será de alguma utilidade manipular o medo e a culpa.
PS: Mônica Moreira da Rocha fez aqui no Segunda Opinião uma preciosa leitura do livro A Arte de Viver em Deus, de Thimothy Radcliffe, objeto de uma “pré-leitura” minha, também postada aqui no SO. As revelações do texto de Mônica, por sua força e elegância, tão estimulantes, inspiraram esta “resposta”.
PS 2: Leiam os livros Homo Deus, de Yuval Harari e A física da alma, de Amis Goswami. Veja entrevista de Jorge Luís Borges na TV brasileira.