O estado da democracia brasileira

Surgiu um alento que ameniza um pouco as tantas agonias por que o país passa no momento. Senão, veja-se. Às “mil-e-tantas misérias” se acresceram: a  pandemia da Covid-19, que, no território nacional e segundo as estatísticas oficiais,  já ceifou a vida de cerca de sessenta mil pessoas; a crise econômica de avultadas proporções, com recessão, desemprego e desânimo; a ameaça da chegada de gafanhotos; a ocorrência dos ciclones-bomba; e, por último, mas não menor, o conjunto de incríveis desventuras e de estranhos infortúnios acarretados pelo bolsonarismo.

A notícia alvissareira vem dos resultados de pesquisa do Datafolha (Folha de São Paulo, 27/6/2020), dando conta de que o apoio à democracia no Brasil atingiu a marca dos 75%, o maior da série histórica iniciada em 1989. Outros resultados da pesquisa são também alvissareiros, tais como: apenas 10% veem a ditadura como aceitável; o fechamento do Congresso é rejeitado por 78%; o do Supremo Tribunal Federal é rejeitado por 75%; o governo não pode proibir greves (81%); 64% discordam da intervenção em sindicatos; 71% rejeitam a cassação do registro de partidos políticos; 69% são contra a prisão sem ordem judicial;  86% repelem o uso da  tortura para extrair informações de criminosos; e 80% não aceitam a censura a meios de comunicação. Pode-se afirmar, assim, que, nestes tempos sombrios, faltos de mulheres e homens públicos com visão de estadista e carentes de ideias generosas, racionais e factíveis, se configura uma cultura cívica com lealdade aos valores constitucionais democráticos e republicanos.

A rigor, no Brasil ou nos Estados Unidos, na China ou na Dinamarca, ou onde mais que seja, aopinião pública pode ser caracterizada com a imagem operística da “donna mobile, a refletir popularidades ou impopularidades, receios e euforias, frustações ou anseios conjunturais. Por conseguinte, orientar inferências político-institucionais de certa complexidade com fundamento apenas em resultados de pesquisas de opinião pública é, no mínimo, temerário. Assim, tem razão a cientista política Amy Smith, “brazilianist” da norte-americana Universidade de Iowa, quando observa que “é cedo para comemorar apoio recorde à democracia no Brasil”, vendo mesmo no resultado da pesquisa em questão um sintoma de preocupação popular (“Folha de São Paulo”, 29/6/2020).

Manifestando algum ceticismo, a cientista política compara as opiniões dos entrevistados sobre a democracia a um termostato: se as ameaças parecem reais, a visão favorável ao regime democrático tende a subir.  Por conseguinte, o apoio à democracia demonstrado na pesquisa deve ser visto também por um lado menos animador, o de que, no momento, a população brasileira enxerga risco real de uma guinada autoritária.

Já observei neste espaço que o país está marcado por índices de violência real e simbólica jamais observados desde o início do experimento democrático em desenvolvimento. É aterrorizante a investida contra princípios éticos, jurídicos e políticos pelo discurso e prática da violência, do preconceito e do ódio, pelo assédio autoritário a instituições como o Congresso Nacional e o STF, e pela ênfase na retórica sedutora, mas vã, de propostas rápidas e fáceis para problemas complexos e difíceis. De fato, a fortuna política acarretou, na última eleição presidencial, a vitória de uma candidatura marcada pelo despreparo e partidária do retrocesso civilizatório e da ressureição de espectros que se já se julgavam esconjurado.

Agora, é organizar a resistência contra os atentados aos valores constitucionais e civilizacionais, democráticos e republicanos, para fazer valer e progredir a institucionalidade tão duramente conquistada a partir da Constituição de 1988, evitando-se o retrocesso e provendo-se o aprofundamento do processo democrático-constitucional.

De todo o modo, como admoesta a Escritura, acada basta a sua agonia. Logo, mesmo relativizando os 75% de apoio à democracia no Brasil e considerando a necessidade – em relação ao novo despotismo em formação – de que resistir é preciso, o momento é de regozijo. Que, afinal, vivam os valores constitucionais civilizacionais, democráticos e republicanos!

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).

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Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).