O ESPECTRO ENTEDIADO DO MUNDO SEM TETO: A OBRA DE EDUARDO FRANCELINO, ATÉ AGORA (VII)

XLII.

É como poder ouvir a própria mente com o ouvido invertido; isso deve explicar o zumbido constante; parece a constante que atesta a morte do paciente acamado no aparelho que registra as batidas do coração: o paciente faleceu faz dias e ninguém veio recolher o seu corpo; uma catástrofe generalizada já esvaziou o hospital e o mundo: era mesmo melhor morrer do que acordar e ter que entender sozinho tudo que aconteceu. Mas é apenas um ouvido que zumbe, o ouvido esquerdo, e já quase não ouve o que se passa lá fora. Já faz mais de um mês, um mês e dois tratamentos pacientes tanto quanto ineficazes, doses disso e daquilo a cada oito horas durante uma semana inteira, primeiro um anti-inflamatório, em seguida um desses fluidos que limpam impurezas, gotas pingadas sobre a caverna misteriosa e surda. Já faz mais de um mês, nem sei quanto mais de um mês, e já me imagino dizendo, daqui a um ano: já faz mais de um ano, nem sei quanto mais de um ano. Mas não são os surdos que profetizam nem os que se tornam sábios e bibliotecários, são os cegos. Que eu também jamais invejaria. Mas será mais fácil julgar as mentiras ouvidas que as mentiras vistas? Ou será possível imaginar a imagem das coisas sempre e nunca o seu som? —— Não fosse o zumbido permanente, eu digo, a sensação de surdez seria como um constante sono localizado: o ouvido virava uma coisa viva que dorme, que vive mas não sente, o secreto sonho vegetal dos preguiçosos, quase bem-aventurados. Mas não. É apenas um erro incômodo de configuração. Além do zumbido ouço algumas funções equivocadas, por dentro: ouço as bolhas fervilhando das bebidas com gás (meu problema é apenas de encanamentos internos). Não posso mesmo dizer, apesar do zumbido que não para, que ouço funcionar os pensamentos, porque, de verdade, não ouço funcionar os pensamentos.

XLIII.

Os sentimentos de amor, que falariam a coisa amada para os olhos mal treinados, por que não são também uma branda pornografia? O que queria o Quixote, afinal, com a Dulcineia? (Um romântico: é capaz de não realizar o desejo para que não se quebre a ilusão). São os cegos que podem não se distrair com as imagens: podem amar sem ilusões perfeitamente, pois o amor se limita ao toque sem contemplação, ou, como nada veem, poderiam tranquilamente não amar. Digo os cegos das lendas e dos mitos. Os da vida real são apenas pessoas.

XLIV.

Ninguém pode confessar que deseja a mentira. A confissão do seu desejo era denúncia de todo desejo semelhante. A consciência do desejo impossibilita a sua realização. A mentira consciente de si mesmo de algum modo não é verdade?

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.

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Airton Uchoa

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