O ESPECTRO ENTEDIADO DO MUNDO SEM TETO: A OBRA DE EDUARDO FRANCELINO, ATÉ AGORA (V)

XXIV.

Penso (que seria dadivoso se se pudesse deliberadamente mergulhar mentalmente num estado pétreo com prazo delimitado, um pouco para que nos acontecesse o que esperavam que acontecesse a eles aqueles que acreditavam que podiam prolongar a vida congelando ainda vivos os próprios corpos, como por enquanto só ocorre nos filmes e na vida real com certas rãs do ártico que não têm como migrar durante os invernos rigorosos, pois houve e há quem nutra esperanças típicas da mais radical ficção científica, mas agora eu me pergunto se uma profunda meditação semiautomática, que obedecesse a comandos prévios que delimitassem pontos de partida ou de chegada, não seriam convenientes, ou mesmo se não seria ainda melhor que não apenas a mente, mas todo o corpo pudesse usufruir de curtos períodos ou temporadas sazonais em estado de pedra).

XXV.

Penso (que o pressuposto perfeito e belo de Descarte tem um pequeno erro de configuração, que seria mesmo uma pena revelar já que “penso, logo existo”, por si só, resolve uma série de problemas, apesar de trazer outros, vá lá, mas que ao menos são novos, mas mesmo uma construção tão elegante na sua simplicidade, ao ponto de ser bela em qualquer língua, ao ponto de se instaurar no lugar-comum de qualquer língua desde que pronunciado pela primeira vez como se fizesse parte do antigo repertório do que achamos que foram as primeiras sentenças, mesmo uma construção dessa natureza pode mostrar um flanco desprotegido, que eu diria qual é, em nome da defesa da verdade, se não tivesse francamente esquecido).

XXVI.

Penso (que o esquecimento nos poupa do vexame e nos rouba momentos fulgurantes, mas que nunca sabemos ao certo quando o que ocorre é uma coisa e não outra).

XXVII.

Penso (que nada impediria que um assassino ou um conquistador de territórios ou qualquer um que rigorosamente não enxergasse nada que não fosse a própria vontade poderia se mover dentro dos rígidos conceitos de moral e ética de Kant, pois seria mesmo essa criatura tanto mais terrível quanto mais coerente consigo mesma fosse, o que nos levaria a perguntar de novo o que é que tornaria a razão um tribunal inequívoco além da forma, e a perguntar um pouco depois se era possível que alguém fosse mal o tempo todo, se não poderia ter um momento de bondade fosse pela vontade de confundir fosse porque tudo cansa).

XXVIII.

Penso (numa casta e raça tão sonhada de brasileiros pensadores cujas ideias não fossem derivativas nem respostivas, gente que ao fumar cigarros muito fortes se criasse para frente e enchesse o ar de uma fumaça tão densa que era possível sentir nela o calor e inusitadas formas de vida, brasileiros pensadores que baseassem seus conceitos nas palavras mais autóctones e difíceis de traduzir, porque exigiriam a vivência, palavras que mesmo os portugueses de hoje estranhariam, ou porque nunca disseram tais palavras ou pique deixaram de dizer as mesmas palavras faz tanto tempo que não lembram já).

XXIX.

Penso que um dia vou deixar de pensar o conceito pictórico do pornográfico, pictórico que já está na própria palavra, ainda acrescida de uma modulação técnica de linha de montagem (eu que um dia vi, madrugada a dentro, um livro sendo preparado às pressas nas máquinas, já nem me ocorre por que urgências, mas isso já nem importa, posto que não importa o livro mesmo, descartável, desnecessário, ao contrário do trabalho físico, mistura de suor e graxa, músculo e máquina, que imprimia mais a própria força ininterrupta que as próprias palavras a que eram indiferentes), vou deixar de pensar o conceito por cansaço, cansaço de pensar nele como de falar dele. E lembro que sim, estou já meio cansado desde o começo ou desde antes, quando pensei em pensar. E será sempre assim que se sentirão os que se dedicarem ao ofício inadequado de tratar a pornografia sem o exercício imediato dos olhos.

XXX.

Que toda casa nasce e vive e morte filosófica, ainda que nela pouco se pense, pois além dos descasos de fuga, e quem somos nós para falar de quem foge, há os descansos inevitáveis, os necessários. Por que seria filosófica a casa ainda que reinasse dentro dela o silêncio, além da pobreza vazia da falta de móveis, que quase tornavam imensa uma casa tão pequena, mas vá saber como viam as crianças, além da pobreza escorrida de maquiagem do dia anterior em paredes que tanto choraram? A casa, qualquer casa, ou uma ausência dela que faz pensar nela de vez em quando (aquela dura escola do pensamento que nasce de pés bem machucados), pó que seria filosófica a casa? Mas como não seria filosófica a casa, não sei até que ponto a partir das mãos em repouso, não sei até que ponto a partir dos olhos fechados por cansaço? E como não seria filosófico o desabrigo, que força a pensar de-desde os pés?

XXXI.

Pensadores mal-trapinhos que anunciassem o que tinham que dizer, e que jamais diriam se não fosse necessário. Cada um diz sem olhar nos olhos de ninguém e com pressa de sair não importa se houve vaia ou aplauso, indiferença ou piedade: não foi porque eu quis, e não desejam o perdão de ninguém, que o perdão tornava nulo o esforço, a renúncia, o sacrifício, mas porque alguém em algum momento vai precisar entender. Pintores que não desejassem que viesse a pergunta da razão e da origem, que lhes perguntassem por que e como e de onde. Porque tudo que podem dizer é mesmo que não sabem. E os que perguntam nunca acham que isso é o bastante.

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.