O ESPAÇO E O TEMPO DAS NARRATIVAS. – PARTE I

 

    Thomas Mann em A Montanha Mágica passeia pela montanha ao sabor das palavras. Umberto Eco em O Nome da Rosa nos embeleza com a narrativa dos fatos ocorridos em um mosteiro encravado no interior dos conflitos éticos, filosóficos e religiosos do período narrado. Albert Camus nos põe em Orã para entender o advento d’A Peste e o absurdo deste ser posto na condição de humano. Embora com escritas diversas e a tratar de temas distintos os autores tiveram o cuidado de desenhar com as palavras o lugar de suas narrativas, mesmo que nestas o elemento morte esteja presente.

    Nos dias 06 e 09 de agosto de 1945 os habitantes de Hiroshima e Nagasaki não puderam narrar o nascer do dia, o percorrer da manhã, o decorrer da tarde ou o cair da noite. As narrativas escritas sobre os mortos foram construídas sem que eles pudessem entender nada. Afinal, muitos nem o direito de acordar tiveram naqueles fatídicos dias.

    O mundo que assistiu horrorizado o crescimento do nazismo assistia a vitória dos aliados e um absurdo sobre o outro não parecia importante. Importava a vitória. Alguns humanos, chocados com a realidade das bombas atômicas tecem críticas até os dias de hoje sobre a forma com que tamanha atrocidade ocorre e, mesmo que não queiramos, muitos japoneses ainda choram vidas inocentes acordadas para a morte naqueles dias.

    Virando a página.

    Setenta e cinco anos depois uma explosão que passaria a ter formato parecido com o desenhado pelas bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki atingiu Beiruta, capital do Líbano. A diferença em quantidade de mortos é abissal. No Líbano não se atingiu uma centena de mortos nem chega à casa de milhares o número de feridos. 

    É justamente este o problema da humanidade no espaço/tempo que estamos a, digamos, viver. Na realidade, muitos apenas sobrevivem. Nos acostamos com a morte em quantidade e tal fato banaliza a vida. Não existe uma forma de banalizar a morte. Tal fato é impensável e impossível. O que nós estamos banalizando é o ato de viver quando consideramos o espaço/tempo biológico da vida que exercemos no Planeta Terra.

    Não estamos mais a tratar de narrativas sobre a vida. Aliás, estas são pensadas em tempo que deve ser rápido em um espaço curto. Tudo virou nada. Antes a narrativa do viver importava tanto quanto a vida. Hoje a vida está encurtada e o mundo transformou a narrativa do viver em alguns caracteres. Que ser vivente terá chegado até esta linha? Muitos talvez tenham lido o títulol, outros o primeiro parágrafo e outro grupo parou ao ler sobre as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. Afinal, o que importa é viver.

    Se o que importa é viver como é possível não olhando para o que está ocorrendo pelo mundo? No momento em que digito estas palavras pessoas encerraram suas narrativas devido à pandemia Covid-19. No Brasil, neste momento, somos 96.096 narrativas a menos. 

    Ocorre que as narrativas a desaparecer vitimadas pela Covid-19 tiveram tempo de acordar, trabalhar, constituir família e até de se prevenir contra o vírus. As vítimas de Hiroshima e Nagasaki não puderam acordar. As vítimas da explosão em Beirute transmitiram o fato para o mundo pelas câmeras de celulares em tempo real. É, a vida virou algo a ser narrado em morte, não em vida. 

    Em tempos idos, março de 2020, o brasileiro estava assustado com o que via pelos telejornais sobre a Itália, a Espanha. Adentramos o mês de março como que fossemos narrar 2020 conforme roteiro pensado na noite de 31 de dezembro de 2019 e manhã de janeiro de 2020. Hoje somos 96.096 narrativas a menos e as pessoas parecem viver (se é que é possível) como nada estivesse ocorrendo. 

    Thomas Mann, em A Montanha Mágica, questiona sobre a possibilidade de “narrar o tempo, ele próprio, o tempo como tal, em si mesmo? Não, de fato não, algo assim seria arrojo insano!!!” (Mann, 2016). Talvez hoje insano seja narrar o viver. Estamos transformando a memória dos mortos em algo invisível em violência assustadora. O processo de invisibilizar mortos é típico de uma sociedade destruída em seu tecido social. O mesmo telejornal a noticiar o quantitativo de vidas perdidas fala da alegria do gol marcado pelo retorno da prática do futebol nos estádios vazios. 

    A insanidade da pergunta de Thomas Mann deve ser posta à sociedade a assistir com naturalidade o dia em que chegaremos aos 100 mil mortos por Covid-19. Esta mesma população parece não perceber estarmos em agosto com o calendário onde tudo é adiado ou cancelado, menos a irracionalidade humana do ser racional. 

    É, parece ser necessário nos recolhermos à montanha descrita por Mann, ao mosteiro de Umberto Eco ou assumirmos os questionamentos postos por Camus. Não podemos continuar a viver normalmente ante o número de narrativas perdidas. 

    Necessário será quando tudo isso passar (quando nem sabemos o que é que estamos a viver) redesenhar o lugar, refundar o espaço e olhar o tempo da narrativa não vivida. A quem caberá narrar as vidas não vividas? A quem caberá narrar acerca das narrativas interrompidas? Ou continuaremos a olhar para a tragédia do ocorrido na Itália, na Espanha ou nos EUA de dentro de nossa tragédia? É como olhar o terremoto de dentro de um barco “navegando” em um maremoto.

    Ainda é tempo (presente) de repensarmos (passado) o viver (futuro) de nossa narrativa.

   

 

   

 

   

Medeiros Júnior

José Flôr de Medeiros Júnior é Mestre em Direito Econômico - PPGD/Unipê e em Ciências Jurídicas - PPGCJ/UFPB, Pós-Graduado em História (UEPB), graduado em Direito - Unifacisa – PB e em História - UEPB. Professor de Direito e Consultor em Educação. Autor de livros, capítulos de livros e artigos sobre meio ambiente, cidadania e o tempo enquanto discussão filosófica. Apaixonado pela literatura com especial olhar aos escritos de Dostoiévski, Camus, Kafka, Borges, Saramago, James Joyce, Mário Vargas Llosa, George Orwell, Umberto Eco. Leitor de Nietzsche, Foucault e Certeau, mas prefere conversar com Walter Benjamin.