Uma revolução sem povo: com quem ficou o controle da reconstrução da linguagem?
“Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio.
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.”
Oswald de Andrade
A revolução semântica e os neologismos pelos quais as línguas foram sendo abastecidas e modeladas, ao longo do tempo, originaram-se de uma pressão popular espontânea dos que falam e escrevem em um mesmo território vernáculo.
As línguas foram construídas assim. Os idiomas mortos deixaram o legado dessas transformações para os linguistas. Figuras gramaticais, os dogmas léxicos e as leis que controlaram o bem falar, fortaleceram, séculos afora, as instituições da linguagem, com o suprimento regular de inovações que se incorporaram, definitivamente, ao uso corrente de neologismos aclimatados ao meio-ambiente cultural. Os neologismos e o improviso criativo receberam, na pia batismal, a água benta do reconhecimento que lhes deu lugar e significado na expressão cotidiana da palavra e no registro escrito das criaturas cultivadas. Ganharam cidadania no plano político e conteúdo nos escaninhos da linguagem. E, por fim, acomodaram-se, como verbetes e abonações nos cartórios linguísticos – os dicionários. Transformaram-se em paradigmas da erudição e alicerces da edificação literária. As vivas, estas são a obra persistente da infinita criatividade dos humanos. São trabalhos em construção.
A língua é um processo permanente de usinagem de vocábulos e construções.
O que se passa agora é um fenômeno surpreendente. A modelagem da língua parece ter escapado à interferência direta do povo que a instrumentaliza e dos meios eruditos — e furtou-se às imposições da ordem, à autoridade da gramática e do policiamento dos costumes do vernáculo.
As “pressões” originam-se agora na mídia, nas minorias militantes de causas particulares: de greis ideológicas, das afinidades consensuais de dissidências de gênero, de movimentos sociais periféricos e das comunidades autônomas que foram surgindo nos espaços devolutos da “urb”.
Quem influencia a formação da língua em processo permanente de transformação são os repórteres televisivos com os seus cacoetes indigentes e os tropeços ocasionais e intencionais das regras elementares do falar e entender, da emissão e da percepção da mensagem.
Quem faz a língua que falamos, pela indolência da massa fluente, são os comentaristas da tevê que, agora, exprimem-se temerariamente sem “script”: abandonaram o “prompt” e deram por criar regras próprias.
Quem faz a língua são os políticos e os agentes do Estado, afogados na própria ignorância que os fez representantes do povo, substantivo genérico (por vezes, adjetivo com intenções pejorativas), a imensa maioria da população destituída de educação, de ideias e de consciência política.
A única maneira de resistir à prostituição da linguagem e de mantermos a nossa língua como veículo claro de entendimento e construção lógica do pensamento é a educação e os caminhos que asseguram a distribuição equitativa da consciência política e da racionalidade de propósitos entre os que falam, ouvem e escrevem na mesma língua.
Estabeleceu-se, nestes últimos tempos tumultuados por tantos paradoxos, uma certa ideologia do gênero e, com acertos memoráveis, lançaram-se procedimentos linguísticos distintivos dos sexos que tornaram anacrônicos os “français et françaises”, arroubo de De Gaule, em discurso argelino. O “meus senhores e minhas senhoras” ressente-se de canhestra fala dissonante, por agora. Buscou-se, então, legitimidade para o neutro que designaria uma variante dos sexos, cartorialmente aceitos com discriminada exclusividade, até recentemente. Porfiam os ideólogos da linguagem por um forma do “it” inglês, na qual se acomodariam os dissidentes da estrutura sexual discrimitatória ancestral.
O ministro da educação, em um desses dias, saiu de seus afazeres para empregar ostensivamente um “x” distintivo, em ação identitária assumida. Dirigindo-se aos consulentes do site do MEC, o ministro saudava-os com um alegre “bem vind“x”. Nessa perseverante campanha, pressente-se a preocupação de opor o tratamento neutro à fórmula binária consagrada, em meio ao cipoal de neologismos ideológicos em que nos enroscamos.
Percebe-se, a um só tempo, a intenção de ampliar o campo léxico com substantivos e adjetivos, masculinos e femininos, de forma antidiscriminatória, e introduzir alternativa que reconheça opções de gênero e sexo, como conquista irreversível na sociedade. O masculino genérico já foi abolido em ondas precedentes, e foi-lhe retirado discricionariamente o poder de designar genericamente – de forma discriminatória para muitos críticos — os dois sexos. Esses torneios linguísticos não escondem, entretanto, a forte inclinação política e ideológica que os acompanha. Por outro lado, na medida em que a língua que falamos, as estruturas linguísticas que a formam e condicionam, possam influenciar a organização do pensamento, é possível avaliar o alcance que essas questões podem assumir quanto às pressões exercidas sobre o vernáculo de que nos servimos. E descobrirmos porque avultaram, em tempo recente, no Brasil, e no brasileiro falado.
O Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, assenhoreou-se do monopólio da engenharia da nossa inculta e bela língua, derradeira flor do Lácio (perdoem o lugar comum de uma citação gasta e tão ingênua), adotada pela graça dos impulsos colonizadores da conquista lusitana. Renascido das chamas do descuido, lá se pôs a Casa da língua pátria a legislar sobre questões vernáculas contingentes – e o faz em benefício do neutro insurreto. Sabe-se lá o que se há de esperar de outras façanhas linguísticas desse “soviete” vernacular, enraizado no coração da cultura paulista. A exemplo do Forum de São Paulo não lhe hão de faltar a força e a “legitimidade” reclamada pelas instâncias paralelas ao poder constituído para impor a sua precedência sobre as instituições culturais do país.
Há, nas fronteiras radicais da cultura, quem defenda, com acirrado ânimo patriótico, o tupi-guarani como língua oficial desta terra. Entre essas nações de numerosos dialetos estariam, com alguns milhões de escravos trazidos das costas atlânticas da África, os brasileiros autóctones e uma ampla população banto e sudanesa apresadas por mercadores e traficantes negreiros. Considerando que as linhagens africanas representadas no Brasil tornaram-se maioria, transitoriamente, em determinados momentos, superiores aos indígenas filhos da terra e aos recém-chegados colonizadores, adotado o tupi-guarani, teríamos ficado em falta com a imensa variedade de dialetos que perduram ainda hoje no imaginário dos descendentes africanos.
Lima Barreto criou, com Policarpo Quaresma, funcionário exemplar do ministério da marinha, encarnação perfeita de amanuense arrebatado por princípios patrióticos. Por eleição pessoal, defendia o tupi-guarani como língua oficial do Brasil. Com essa escolha, dominado pelos arroubos patrióticos de um brasileiro dominado pela ufania, reconhecia o velho e caturra Policarpo quão superiores éramos e virtuosos, ricos e magnânimos, corajosos e guerreiros triunfantes, fieis à imagem que o Conde Affonso Celso cunhara tão generosamente do brasileiro e desta terra.
Levaria tempo para que a figura do “homem cordial”, magistralmente construída por Sérgio Buarque de Holanda pusesse os reparos devidos nessa visão idílica que agora se desfaz, mercê dos contraditórios, dos desencontros e da imensa dificuldade que os brasileiros têm de aceitar a realidade da qual vimos fugindo, sempre prontos a aceitar os sinais reconfortantes da esperança. Edgar Morin diria, judiciosamente, que “l’espérance est l’attente de l’inespéré”.
Concluindo, espero e confio que os meus leitor”x”s possam tirar do desconsolo deixado neste escrito a conclusão de que, contra o inesperado, nada há a fazer. A não ser esperar que o inesperado aconteça sem aviso prévio.