“Não é a pornografia que é obscena; a fome é que é obscena”. José Saramago.
O ser humano mais empobrecido de riqueza abstrata tem um apego compreensível à sua modestíssima moradia, construída numa área de risco por ocupação de terra privada ou estatal. É que lhe ensinaram o conceito jurídico abstrato e simultaneamente concreto da propriedade, que é uma mercadoria, e ele pretende ser proprietário daquela precária moradia.
Ele sabe que a posse, diante da lei, é situação precária; e a propriedade é direito respeitado e sólido. Ensinaram-lhe conceitos legais, e ele os absorveu como se fossem corretos, apesar de injustos.
O direito de posse, que deveria se sobrepor a tudo, porque representa o direito natural relativo à necessidade de uso do bem apossado, é confundido com o direito de propriedade, um ente jurídico abstrato feito para escravizar pelo dinheiro.
Essa confusão semântica, muito comumente difundida, que mistura conceitos das categorias capitalistas como se fossem direitos naturais, é proposital (democracia burguesa como conceito de livre escolha; política como
conceito de expressão soberana de vontade, trabalho como dado ontológico de sua existência, e por aí vai..).
O escravizado pelo salário, agradece pelo trabalho que o escraviza, porque é dele que tira o seu sustento sofrível, e até louva o patrão privado ou estatal por explorá-lo; quando abordado por um policial que o discrimina pela cor da pele e vestimentas surradas, ele logo puxa a carteira de trabalho e a mostra como certificado de detentor de direitos próprios à cidadania escravista (na qual o dinheiro qualifica desigualmente os próprios cidadãos).
Quando mais consciente se sindicaliza para defender a permanência no trabalho que o escraviza e até se filia a um partido político de trabalhadores, como sintoma de coerência com o que lhe foi ensinado pelos sindicalistas como o lado digno da relação social capitalista. Assim, tem orgulho de ser escravo, e positiva tal condição, ao invés de querer superá-la e substitui-la por outra forma de produção social.
Quando menos politizado troca o voto pelo imediatismo de um favor ou mercadoria e foge intuitivamente das promessas políticas que já intuíram como vãs; aliás, isso acontece em todas as classes sociais, mudando apenas o padrão do interesse e do favor ou benefício recebido, tudo enquadrado na famosa “lei do Gerson” na qual a regra é levar vantagem sobre o outro (Virgílio Távora tinha razão [apenas empírica ou filosófica?] com a inscrição que li na sua lápide sepulcral: “o mundo se move por interesses”).
Assim, o apego às categorias capitalistas, cultural e historicamente introjetadas nas nossas mentes como conceitos positivados do que seja “o bom e virtuoso”, provoca o apego às ditas cujas, bem como o medo de perdê-las, tal qual o trabalhador abstrato assalariado explorado que tem medo de perder o emprego, única forma de obtenção do seu sustento familiar, sem saber que é o emprego o que o escraviza.
Para o cidadão comum iletrado ou não (salvo raras exceções que confirmam a regra) constatam-se cotidianamente a ocorrência das seguintes ingenuidades pueris:
– que o imposto cobrado em dinheiro, a mercadoria especial que compra todas as outras, e a única sem valor de uso por si mesma, pode ser salutar e indispensável, dependendo de sua correta tributação (???) e aplicação;
– que o policial militar é necessário para combater o criminoso que rouba a mercadoria, mesmo que ao mesmo tempo aja defendendo a aplicação da lei que oficializa, descriminaliza e permite a extração de mais-valia (que ele não sabe o que é, mas a ela se submete), mecanismo pelo qual se consubstancia a apropriação indébita do tempo-valor na produção de mercadorias para a acumulação do capital e para o sistema como um todo;
– que o militar das forças armadas tem a função heroica de defesa da pátria amada, idolatrada, salve, salve, e que podemos e devemos apenas colocá-las ao nosso favor e controle, entendendo como salutar a sua natureza e função social, sem entender e considerar a sua função original, imutável e primordial que é de coerção sistêmica social;
– que o Estado e a pátria verde-amarela são suas garantias de vida e proteção, e carrega a culpa da sua miséria que julga derivar dos seus próprios e pretensos deméritos (poucas ou nenhumas letras, preguiça, burrice, destino, incapacidade, etc.), e roga a Deus pelo paraíso pós-morte como compensação de sua vida severina terrena;
– que o governante pode alterar substancialmente a realidade se fizer uma boa gestão, e que são somente a corrupção e a falta de boa vontade os culpados pelo aumento da fome; pela escola pública ruim; falta de esgoto sanitário; falta de assistência médica; falta de segurança respeitosa e solidária; falta de moradia minimamente confortável; inflação que lhe corrói o salário baixo; transporte lotado, demorado, e caro; fornecimento de energia e água de alto custo em relação ao seu salário; poder aquisitivo inferior às suas necessidades de consumo com qualidade; falta de acesso à cultura e ao lazer, e por aí vai;
– que a política e as eleições poderiam ser instrumentos democráticos de exercício de sua vontade soberana, e que os candidatos eleitos poderiam representar legitimamente os seus interesses, e que assim não o são por distorções pessoais de caráter;
– que os ricos são ricos porque são mais inteligentes e trabalhadores, e merecem acumular as riquezas que têm por méritos próprios, quaisquer que sejam os tamanhos delas e que todos devem respeitar os seus direitos protegidos pela lei;
– que é livre para escolher o que fazer profissionalmente, ou seja, vender ao detentor do capital por ele escolhido, e como única possibilidade, o único bem que tem, e a preço vil: a sua força de trabalho;
– que não sabe explicar ao seu filho, o porquê de tanta miséria social, e agora agravada pelo desemprego estrutural, mesmo tendo sido honesto trabalhador, bem como o porquê, de uma diferença tão abismal entre o que ele ganha como trabalhador de baixa renda, a grande maioria, e os figurões de renda alta que ganham em um mês o que ele ganha em um ano ou dois;
– que, que, que…
Entretanto, aculturado incorretamente nas categorias capitalistas como sendo tão necessárias como a água que bebe e o alimento que come diariamente, ele se apega ao que está posto como forma de obter o que não tem, e apela para Deus que lhe ajude e compense aqui e na vida eterna, amém.
Disse Karl Marx, no Manifesto Comunista, que os trabalhadores não têm nada a temer senão a libertação dos seus próprios grilhões; mas os marxistas do movimento operário endeusaram de tal forma o trabalho e o trabalhador, que ao invés de superá-las como categorias capitalistas que são, transformaram o meio (a revolução pretensamente proletária e a categoria trabalho) como um fim em si, e todos passaram (até os nazistas em suas propagandas ideológicas e na entrada de Auschwitz) a endeusar tais categorias numa confusão semântica proposital em relação à ontológica atividade humana de produção de bens de consumo (não de mercadorias) com seus esforços físicos em interação com a natureza.
As revoluções ditas proletárias conservaram a extração de mais-valia estatal e seu eterno re-acoplamento indispensável ao capital que transformou e devolveu ao mercado (categoria capitalista e o altar-mor da celebração do embate épico entre as mercadorias) tudo o fluxo de produção próprio ao sistema produtor de mercadorias.
O aumento da fome no mundo, que atualmente ocorre segundo a FAO, organismo das Nações (des)Unidas, não é uma questão de falta de boa-vontade governamental para com a relação capital e trabalho, ou de sua correta regulamentação fiscal pelo Estado, mas a resultante de uma relação social de produção que encontrou o ocaso por conta de suas próprias contradições.
O desapego de todos às categorias capitalistas dá medo, por comodismo e ignorância do que pode vir, e os muitos que têm alguns privilégios e instrução, querem se autoconvencer que a reforma política-estatal dentro do capitalismo é o caminho mais cômodo a seguir, ainda que esbarrem na realidade do empirismo de uma relação social falida que os contraria.
Os que deveriam não temer o futuro porque o presente é insuportável, e que nada têm, positivam o presente por desconhecimento da sua natureza negativa e do que fazer e como fazer, e querem apenas que o defunto caiba no caixão, independentemente do tamanho de ambos, e continuam a esperar pelo governo para o milagre da salvação, ou acertar na mega-sena das loterias da vida.
Ou superamos o capitalismo ou sucumbiremos diante da sua natureza genocida e excludente; não há como conciliar com ele, e sem medo de ser feliz!