O capital aguenta a quarentena mundial?

“A redução da poluição do ar causada pela pandemia na China sem dúvidas salvou vinte vezes mais o número de vidas perdidas devido à doença. A questão não é concluir que as pandemias são benéficas, mas medir quão ruins para a saúde são os nossos sistemas-econômicos. Mesmo na ausência do coronavírus.”

Marshall Burke, professor de ciência dos ecossistemas na Universidade de Stanford, nos USA

A China, país que soube controlar melhor o nível das infecções e mortes por coronavírus, viu o seu PIB despencar de 6,1% em 2019 para 2,3% em 2020, o pior resultado desde a ascensão ao poder de Deng Xiao Ping. Juntamente com a Índia (que agora enfrenta um surto progressivo de infecção por negligenciar o isolamento após medidas iniciais de confinamento, que vai causar problemas sérios), também teve superávit do PIB.

São os dois únicos países do mundo a apresentaram superávit, e assim mesmo em decréscimo considerável, e se constata uma queda substancial no PIB mundial em 2020.

O Brasil de Boçalnaro, o ignaro, e de Paulo Guedes, o liberal ortodoxo, que não soube controlar a crise sanitária, caiu de 9ª lugar economia mundial para a 12ª lugar, sendo superado pela Coreia do Sul, Canadá e Rússia. Somos, hoje, os campeões de contaminações e mortes. Há que se duvidar de quem é a culpa?

Ao quadro anterior de desemprego estrutural se somaram agora cerca de 200 milhões de desempregados (estatística de junho de 2020, que está defasada, cujos números não param de aumentar); mais de 50% da população mundial já vive com menos de US$ 5,5 por dia (ou menos R$ 30,00 reais); aumenta a fome mundial segundo relatório da FAO; e por aí vai…

Os países da periferia do capitalismo são os que mais sofrem por conta de que os seus Estados não podem emitir moeda sem lastro (como fazem os EEUU e a Zona do Euro), e não podem oferecer subsídios aos seus desempregados e suas populações sem  grande parte atuando no setor informal da economia, que assim ficam completamente desassistidas.

Nesses países os governantes atuam cada vez mais de forma repressiva diante do desespero populacional como forma de se manterem no governo,  deixando morrer os infectados e os chamados “supérfluos do capital” (os que já não podem produzir valor e têm que consumir mercadorias e serviços).

Seguindo a trilha do comportamento policialesco dos governantes dos países pobres, Boçalnaro, o ignaro, ameaça colocar o Exército nas ruas para evitar o confinamento (mas parece que falta combinar com os dirigentes militares), no que é apoiado por empresários de grande e pequeno porte, e até mesmo por parte dos incautos trabalhadores assalariados temerosos com a possibilidade de perda dos empregos.

Tudo parece ser absolutamente contraditório numa polarização que aos olhos desavisados parece insolúvel (e o é, sob a ótica capitalista): ou se fica em casa e se morre de fome, ou se sai e se morre de covid19 em cerca de 2 a 3% dos possíveis contaminados!!! Esta é a falsa polaridade social.

O coronavírus apenas acentuou a crise fundamental do capital no seu estágio de limite interno de expansão e da impossibilidade de aumento da produção da massa global de valor, condição que oportuniza a criação de bolhas financeiras de capital fictício numa aposta de retomada do crescimento econômico que não mais virá.

A montanha de dívidas públicas acumuladas durante a pandemia e que se somou a uma outra montanha anteriormente existente prenuncia que estamos chegando à hora da verdade na qual os padrões monetários simplesmente deixarão de ser acreditados e o sistema bancário mundial congelará depósitos de correntistas e investimentos.

Os países da periferia capitalista, que pagam juros altos de suas dívidas e com isto financiam parte da sustentação financeira do sistema de crédito internacional falido, deixarão de pagar os juros porque estes se tornarão impagáveis; as dívidas colossais evidenciar-se-ão insolváveis.

Em razão da fragilidade do sistema financeiro internacional já não há mais como suportar choques externos, e nos aproximamos do momento da decretação falimentar do sistema financeiro de crédito, o que significará uma hecatombe social e a contraditoriedade explícita dos conceitos econômicos capitalistas até hoje definidos.

De uma hora para outra os ricos perderão sua capacidade de compra; e os pobres estarão sujeitos a mais miséria e fome. Mas, como dizia Marx, a sociedade nunca apresenta problemas para os quais não haja soluções. Soluções há, mas sob outros critérios de sociabilidade.

O dinheiro de há muito deixou de ter conexão completa com a produção de mercadorias, e passou a ser apenas um instrumento monetário de controle da hegemonia dos países do G7 e seus blocos continentais via Bancos Centrais, e funciona como um mero vale consumo distribuído gratuitamente ao mundo empresarial e até às pessoas (sob a forma de auxilio emergencial) como forma de manutenção do funcionamento da máquina mercantil de produção e consumo de mercadorias.

Neste sentido o Estado passou a ser força auxiliar de controle social como nunca antes fora nos tempos ditos modernos; a complementariedade entre capital e Estado tomou outra feição, e muito mais despótica.

É claro que tal comportamento significa uma distopia funcional da sociedade tendente a cairmos numa perigosa barbárie e anomia social sob intervenção da força militar estatal, em face da dissociação entre lógica funcional do capital (a produção de valor pelo trabalho abstrato e extração de mais valia que oportuniza a acumulação do capital) e a mediação social feita sob tal critério.

É a contradição do capital de que falava Marx num momento do seu clímax existencial.

O recente programa de Joe Biden de trilhões de dólares tirados da cartola do Federal Reserve, juntamente com o alto grau de vacinação dos Estados Unidos, de quase 70% de sua população, e está vendo cair o grau de infecções e mortes (por lá já se tem 30% das mortes havidas no Brasil, proporcionalmente falando), e deverá promover uma retomada de desenvolvimento econômico por lá, ainda que em percentagem mais reduzida por conta da incapacidade mundial de compra e produção de mercadorias.

Entretanto, mesmo nos Estados Unidos, onde estão sobrando vacinas e já estão vacinando menores de 16 anos, há uma faixa da população que por vários motivos (aí incluídos os negacionistas trumpistas) recusam-se a tomar as vacinas, fato que deverá prolongar a permanência do vírus na sociedade estadunidense, e prorrogar o nível de imunização de rebanho (termo que considero inadequado para seres humanos, e deveria ser chamado de imunização populacional profilática) que colocaria em xeque o processo de propagação do vírus.

Mas o mundo periférico do capital não pode emitir moedas fracas, e mesmo assim tem feito isso de forma desesperada e suicida cujos reflexos danosos serão sentidos já no médio prazo para o capital nestes países, posto que tal medida gera inflação monetária causada pela oferta de dinheiro sem produção e comercialização correspondente; ou seja, tudo roda em falso e, obviamente, tal situação não pode perdurar por tempo indefinido.

A verdade é que a lógica do capital reproduz no mundo o que se observa nas cidades: um pequeno núcleo de privilegiados do capital cercado por uma cinturão de pobreza cujo acirramento tende a provocar uma explosão social.

O mundo capitalista desenvolvido graças à pobreza que causa à maioria dos países enquadrados em sua lógica segregacionista, mesmo na pandemia, tem artifícios para se salvar, mas a labareda do fogo dos seus vizinhos está cada vez mais a ameaçar a sala confortáveis dos senhores do mundo (ainda que o coronavírus não seja seletivo como o capital e tenha ceifado muitas vidas nesse grupo de privilegiados).

Diante de tais constatações as soluções apresentadas por diversos pensadores, mesmo os que fogem da sempre desejada simplista (e impossível) retomada do crescimento econômico, como taxação das grandes fortunas (que hoje se concentram nas mãos de uns poucos); subsídios às empresas e desempregados; redução da carga tributária para alimentos e mercadorias de primeira necessidade; barreiras fiscais protecionistas para produtos importados de luxo, etc., etc., etc., mantêm-se dentro da imanência capitalista.

Ora, não se pode combater o mal com as mesmas ferramentas da causa do mal. Ressalte-se que a pandemia apenas veio explicitar algo que já vinha ocorrendo, ou seja, o fato de que a crise econômica mundial é incapaz de prover comodamente a vida social e ecológica de modo sustentável sob seus critérios excludentes.  

Desse modo há que se pensar fora da caixa, ou seja, fora da imanência capitalista, e há que se usar toda a potencialidade de tantas mãos e cabeças aptas à produção e distribuição que se encontram impedidas de fazê-lo por conta da idiossincrasia de um sistema de produção que cava a sua própria sepultura (Marx).

Há que se produzir vacinas para doar aos pobres do mundo e em quantidade suficiente para salvar a humanidade;

há que se distribuir objetos de consumo e serviços (não mercadorias) de modo a que seja promovida a profilaxia sanitária;

há que se combater o obscurantismo religioso e negacionista;

– há que se combater a repressão militar para manutenção da (des)ordem capitalista;

– há que se promover a solidariedade humana ao invés da competitividade autofágica;

há que se prover a vida!

Dalton Rosado.

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;