O cajado da fé e a fogueira das vaidades

“É próprio da fé esperar contra a esperança “

Ernest Renan

Venho há algum tempo trabalhando com confessado esforço e atenção votiva sobre a estrutura de poder na Igreja Católica. Nada mais do que exercício pouco disciplinado, devo reconhecer, de um “soi disant” cientista político em disponibilidade. Colhi esse vezo pouco educado de perscrutar terreno alheio animado pela curiosidade que o poder monárquico da Igreja desperta em mim, aguçando a bisbilhotice de um observador desengajado. Não foram as questões teológicas que me atraíram, devo confessar. Deixei-me dominar pela estrutura legal, as relações internas de poder, influência e autoridade, vivamente cultivadas por Lipset (sou um cético em matéria de fé, desculpem-me, nada pessoal nessa manifestação abusada), e pelo “constitucionalismo canônico” razões confessadas dessa sedução.
Para que não pairem dúvidas e suspeitas na mente indulgente de temerários leitores, devo confessar-lhes, de antemão, que não são tratadas aqui questões de fé; ademais, não há como enxergar no texto ofensas intencionais a persignações de consciência que todas elas merecem, reconhecidamente, o meu respeito. Trata-se de um simples exercício compartilhado de descoberta das intimas relações de poder em uma poderosa estrutura de governo, o Estado Vaticano. Por fim, admito começar aqui, com estas notas, um trabalho de pesquisa sobre o tema que, de saída, vai ganhando corpo e consistência. Assim espero.
Criei coragem, sem ouvir as ponderações, de um modo geral sábias, de meu orientador, professor Filomeno Moraes, e decidi-me por produzir essas ousadas considerações. Tudo, afinal, por impulso e motivação suscitados graças a um episódio recente no qual se envolveram, durante os serviços religiosos, em paróquia desta cidade, antístites graduados e paroquianos fiéis. As unanimidades ideológicas e as confissões de fé já não são assim tão unânimes, como foram outrora, contidas pela persignação enérgica da disciplina e do proselitismo. O acontecido não surpreendeu; nestes tempos tempestuosos do agora, a razão cedeu lugar à incontinência verbal e à adesão a eructações da intolerância, o temor, o ódio e o discurso de autoridade fizeram morada entre as armas do convencimento. Teremos de aprender a conviver com os paradoxos que a intolerância encoraja, sem culpa ou remorsos guardados.
No plano das humanas ambições terrenas, a Igreja, como representação administrativa da fé católica nunca abrigou a unanimidade em meio a buscas incansáveis de anseios e verdades permanentes. Nem nas questões de fé, nem quanto aos mecanismos de afirmação da verdade.
A estrutura hierárquica dessa máquina poderosa cobre espaços seculares e alimenta-se da inspiração divina, como se imagina e creem as criaturas acometidas pelos compromissos da lealdade. Nela, se firmam o convencimento e a força da revelação de dogmas que legitimam, por assim dizer, o seu poder terreno. Por esses espaços ocupados pela autoridade da Cúria romana e pelos coletivos pelos quais se estendem o seu poder, fortalecem-se a construção de dogmas e a gestão de regras canônicas perduráveis, ainda que de todo não sejam consensuais.
Essa força dialética do embate dos contrários, em meio a estruturas tão rígidas de pensamento e fé, não foi suscetível de promover, nessa magnífica edificação de Pedro e Paulo, o esgarçamento das regras e normas, a exemplo da práxis e dos aparelhos de decisão, conforme a índole do sistema democrático de governo. São realidades diversas, dirão os leitores mais aplicados aos contraditórios das certezas humanas. São, de fato. Pois nessa diversidade reside precisamente a singularidade do governo de Deus e a pluralidade do governo dos homens.
A maioria dos concílios – 21 realizados em dois mil anos da imposição de um império cujo poder ampliou-se dos domínios da Revelação para os poderes terrenos do Estado — , para nos situarmos na parte superior da estrutura de poder da Igreja, foi convocada para dirimir dissensos no seio de uma gigantesca comunidade de crentes. Desvios de fé e desacordos de consciência foram surgindo nessas iluminadas assembleias voltadas para a afirmação de consensos, ao longo do seu árduo labor de perseguição de uma unidade espiritual e hierárquica.
Nunca, mentes tão criativas, quanto ambiciosas, alcançaram a comunhão de entendimento sobre muitas e variadas questões. Dissidências profundas, entretanto, foram se aprofundando com o tempo e novas aspirações à salvação e à vida eterna brotaram nos exercícios espirituais e abriram novas esperanças. Cismas ampliaram-se e foram se afirmando, desvios foram castigados na fogueira das vaidades ou encolhidos pelos anátemas da autoridade eclesiástica reguladora.
Latrão, Trento, Lyon, o antipapado, o combate aguerrido contra as astúcias de Lúcifer não esgotaram todos os antagonismos. A consolidação do poder terreno completou-se com a instauração da sede do poder divino entre os mortais. A longa construção do que veio a ser, hoje, a Igreja de Cristo, percorreu caminhos alongados. De começo, trataram e reduziram as discrepâncias crescidas em torno de assuntos de ordem doutrinal e teológica, na definição das grandes verdades da fé. Depois, vieram questões de ordem prática – prosaicas não se revelassem tão relevantes — com questões associadas à estrutura interna da Igreja.
Durante a Idade Média, os Concílios debruçaram-se sobre as pautas de governo, na procura de elementos de fixação dos territórios do domínio da autoridade eclesiástica, do poder e das suas leis. Monges e ministros iluminados pronunciavam-se, por esse tempo, sobre matérias de tal modo desafiadoras, como a administração dos legados de usos e práticas ancestrais, que se impôs a necessidade de consolidá-los em princípios e regras à altura das doutrinas que aguardavam pela regulação necessária. Uma linguagem legalista menos teológica invadiu os documentos conciliares A autoridade do papa, contestada por dissidências notórias, afirmou-se em uma poderosa monarquia papal. E, assim, com tantos poderes e tão concentrados, a Igreja enfrentou a Reforma e a Contrarreforma e aprendeu a conviver com os desafios dos tempos modernos, cedendo e apropriando-se de espaços velhos e novos, e atravessou por muitas e sangrentas revoluções religiosas, as mais graves justamente as monoteístas.
Lutero desafiou regras consagradas, expôs as indulgências à crítica enérgica de um manifesto público e apontou para práticas seculares, recusadas pela consciência de grupos recalcitrantes, apóstatas em perspectiva. Calvino fez a sua Inquisição particular, cuidou do endurecimento teológico e pôs-se a castigar os infiéis, como fizeram Torquemada e e o monge Savonarola, no passado.
As hesitações entre nazismo e comunismo, quando tudo eram amenidades e as ideologias lembravam, segundo alguns teólogos, a inspiração de Jesus e o seu martírio, deixaram os fiéis indecisos mundo afora.
Não é de estranhar, assim, que paroquianos, ovelhas tontas ou revoltadas, houvessem se insurgido e ainda continuem a insurgir-se contra as pregações de seus pastores e as emanações do pensamento político gerado nas fontes mais elevadas da hierarquia.
Que essas posturas se transformem em conflitos, agressões e ameaças de desforços físicos, chocam, porém não surpreendem. A catequese, o cerco aos ímpios e pecadores, a crer nos registros históricos, realizaram-se, no passado, com arrimo nas questões de fé, estão lá nos registros de Paulo e outros depoentes famosos e santos. Essa prédica não esgotou, entretanto, o alcance pedagógico do uso severo do cajado da fé e do recurso caridoso às labaredas da salvação das almas, consumidas pelo pecado.
Os fatos e as evidências escondem-se, entretanto, muitas vezes, na vitimização das culpados e na demonização dos inocentes. É da índole de todas a militâncias. A religião não foge a esses delírios santos a que todos nós, pecadores sem remissão assentada, cedemos.

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.

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Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.