O Brasil e a maioridade civil

“O povo foge na ignorância,

Apesar de viver tão perto dela,

E sonham com melhores tempos idos,

Contemplam essa vida numa cela.”

Versos da música admirável gado novo de Zé Ramalho e Alceu Valença

É verdade que vivemos um dos piores momentos da nossa história. Os números estão aí incontestes.

Há uma associação de crise pandêmica mal administrada, que nos coloca na ponta de lança dos números de infecções e mortes, seja em termos relativos (principalmente), ou seja em termos absolutos, com recordes sendo superados diariamente (só hoje foram 3.950 pessoas sepultadas);

com uma administração pública federal incrivelmente mal orientada pelo que há de mais retrógrado em termos de pensamentos ultraconservadores;

– adepta de posições nacionalistas e ao mesmo tempo com um Ministro da Economia de orientação liberal;

– tendente ao fundamentalismo religioso fanatizado ou farsesco;

negacionista da agressão ambiental e das prevenções sanitárias;

–  imprudente em nossa relação diplomática com os demais países e antiglobalista num mundo irreversivelmente globalizado;

– com lideranças políticas aliadas a notórios milicianos até ontem condecorados e agora mortos ou escondidos;

– denúncias de corrupção com assessores ora presos;

– dívida pública crescente e que quase já alcança o total do nosso PIB anual;

– expressiva inflação de preços de alimentos;

– desemprego de 14,2% da população com mão-de-obra economicamente ativa;

– PIB em queda (depois de 1,1% em 2019, veio – 4,1% em 2020);

membros da equipe governamental abandonando o barco diariamente;

– promessa de campanha de privatizações de estatais inoperantes;

– alinhamento incondicional à velha política do centrão, e

Ufa! Não há nenhum setor que se possa avaliar como merecedor de elogios.

Mas como diz o poeta, em meio ao caos e até mesmo da lama pode nascer uma flor, e para amenizar a crueldade da nossa realidade macabra, eis que as forças militares das três armas, ressabiadas com a recente história de fracasso administrativo de quando governou de modo absolutista e despótico por 21 anos, e há apenas 35 anos, voltou as costas para a tentativa de um dos seus membros de menor patente por elas mesmas expurgado por insubordinação em sua tentativa de receber apoio militar aos seus devaneios golpistas.

Igualmente a elite política, diante da tentativa do Presidente Boçalnaro, o ignaro, de fazer passar uma mudança constitucional de concessão de maior poder de intervenção nas policiais militares dos Estados, que ele supunha lhe dar apoio belicista de golpe, em maioria acachapante, apenas riu da primariedade de tal proposição, que ao mesmo tempo denota desconhecimento da correlação de forças políticas atuais, bem como demonstra ignorância quanto à subordinação e função das forças auxiliares de policiamento aos governadores de estado, cujos deputados mantêm estritos vínculos de alinhamento político.

O poder judiciário, também e, principalmente, nas suas mais altas esferas jurisdicionais, reafirmaram a sua obediência aos princípios constitucionais vigentes e demonstraram cabalmente o repúdio à intolerância de julgamentos ao arrepio da lei processual, bem como de instrumentos de instruções processuais inquisitórias parciais próprios aos regimes absolutistas.

A opinião pública, que até ontem se embandeirava majoritariamente de verde-amarelo em favor do que suponha ser um Brasil preparado para combater à corrupção e a velha política elitista à qual setores da esquerda institucional se dobrara, hoje, se revolta majoritariamente (ainda que haja bolsões de fanatizados energúmenos recalcitrantes que não querem enxergar o óbvio, e que vociferam pelas redes sociais mecanizadas) contra o apoio ao atual governo que já não governa, mas apenas acentua com proposições e diretrizes aloucadas o nosso infortúnio enquanto nação.

O mundo olha pra o Brasil estarrecido, e se pergunta como, em tão breve espaço de tempo, nos tornamos párias sociais, quando outrora éramos uma não cordial, pobre, mas feliz, e na qual havia a maior miscigenação cordata dentre todos os povos.  

Mas os gestos de repulsa ao autogolpe premeditado, esperando apoio militar, institucional e popular, fez água. E isto representa uma maioridade histórica da vida político-social brasileira que nos anima a dar passos ainda mais largos no rumo a uma ingerência popular consciente dos seus interesses sociais soberanos, e de modo jurídico-constitucional cada vez mais horizontalizado.

As dores atuais estarão sendo as dores do parto de uma nova civilização, ou mesmo tendente a isto?

O futuro responderá à esta inquietante indagação.

Dalton Rosado.

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;